Por Nayara Figueiredo
A onda de pedidos de recuperação judicial por produtores rurais pessoa física, que preocupa o Ministério da Agricultura, também é vista com ressalvas por advogados ouvidos pela reportagem. Eles afirmam que, apesar de o instrumento ser importante para recuperar os endividados, profissionais e escritórios de advocacia passaram a oferecer a medida em excesso.
Em alguns casos, a abordagem beira a promessa de garantia dos melhores descontos e prazos para pagar sem perder os bens. “Lamentavelmente, existe uma espécie de indústria da recuperação judicial nos Estados que concentram a maior parte da atividade rural do país”, afirmou Rodrigo Lopes, da área de recuperação de crédito e sócio do Martinelli Advogados.
Não por acaso, os Estados que lideraram os pedidos em 2023 foram Mato Grosso e Goiás, conforme dados da Serasa Experian. Dos 154,61 milhões de toneladas de soja que o Brasil colheu na safra 2022/23, os mato-grossenses e goianos contribuíram juntos com 63,33 milhões.
Nesta temporada, a 2023/24, Mato Grosso deve ter quebra de 16,4% na produção de soja, enquanto Goiás tem perda estimada em 9,7%, o que deixa uma parcela de produtores atingidos pela seca mais suscetível a problemas financeiros — já que os preços do grão também estão em queda.
“Imagina como soa na cabeça do produtor que precisa se organizar quando vem um advogado com uma abordagem agressiva, quase que oferecendo um milagre, com um discurso assim: ‘com a recuperação judicial você vai ter um desconto alto em dívidas, maior prazo de pagamento e seus credores são obrigados a aceitar seus termos e condições’”, exemplificou Lopes.
Segundo ele, o escritório Martinelli atua tanto na representação de empresas do agro e agricultores, quanto de credores, por isso tem uma visão de ambos os lados do problema.
Em 2023, os pedidos de recuperação judicial por produtores pessoa física subiram 535%, para 127, de acordo com a Serasa. Neste ano, a expectativa é que esse número avance, seja pelos impactos do clima, pelo recuo nos preços de grãos ou pela adoção da recuperação judicial no lugar da reestruturação de dívidas, até impulsionada por essas abordagens.
Diante do aumento dos pedidos, o ministro da Agricultura Carlos Fávaro enviou, mês passado, ofício ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) solicitando a atuação do órgão para conter possíveis excessos e interpretações erradas da lei na crescente concessão de recuperações judiciais na primeira instância.
“A recuperação judicial é um mecanismo muito importante, que serve para que as empresas ou produtores voltem a ser saudáveis. Não é algo ruim, mas ela só serve quando não há mais nenhuma outra alternativa, porque o excesso encarece o sistema de crédito ao setor”, disse Rodrigo Lopes.
O sócio de um escritório de advocacia que atua no agronegócio afirmou, sob anonimato, que a blindagem dos bens garantida pela recuperação judicial é um dos maiores atrativos aos produtores. “Vemos agricultores, com patrimônio de R$ 10 milhões e uma dívida de R$ 1 milhão, que pedem recuperação porque não querem se desfazer de uma fazenda”.
Ele concorda que as informações não chegam da melhor forma ao campo. No início deste ano, o escritório João Domingos, de Goiás, chegou a criar um e-book com informações que foram passadas a produtores potenciais clientes, citando no texto que “a recuperação judicial é a melhor ferramenta para que você, produtor rural que deve mais de R$ 15 milhões, consiga pagar todas as suas dívidas com sua produção e não com seus bens”.
O documento dizia que “não importa o que as pessoas vão pensar” do produtor que recorrer ao instrumento de proteção contra credores, e que seria possível obter, ao fim do processo, desconto de 20% sobre as dívidas, carência de dois anos para começar a pagar e prazo de ao menos 10 anos. Questionado, o CEO e sócio do escritório, Leandro Marco, disse que a intenção foi usar uma linguagem acessível aos produtores, e não dar garantias.
“Foi algo muito despretensioso, para orientar os produtores rurais, e teve uma repercussão muito grande. Viram como um marketing negativo”, admitiu Marco. Atualmente, o material saiu de circulação e está sendo reformulado, segundo ele.
Ludmila Torres, presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil em Goiás (OAB-GO), explicou que a publicidade é regulada há anos na categoria e, basicamente, é permitida somente a divulgação de conteúdos informativos. Ela afirmou que não poderia falar sobre um caso específico.
Segundo ela, mediante denúncia, há análise caso a caso para verificar “se foi ultrapassado o limite da informação para uma oferta de produto”. A presidente não detalhou se há algum caso em análise.
Na OAB de Mato Grosso (OAB-MT), o presidente da Comissão de Falência e Recuperação de Empresa, Breno Miranda, tem uma avaliação distinta dos advogados que percebem excessos na abordagem da categoria. “Não vejo de forma alguma uma banalização do instituto, como foi falado pelo Mapa [Ministério da Agricultura]”, disse.
De acordo com Miranda, quem vive em Estados como Mato Grosso, que têm no agronegócio sua principal atividade econômica, sabe como realmente o clima atingiu a produção. “Houve problema na safra de soja e, naturalmente, vai colocar o agricultor em algumas situações que se enquadram na lei das recuperações judiciais”.
“Qualquer uso indevido, não vou afirmar que não há, mas quero dizer que a própria lei dá instrumentos para que o Poder Judiciário, o Ministério Público, possam insurgir contra isso”, ressaltou. Não foi formalizada nenhuma denúncia no Estado, segundo ele.
Dois advogados de um grande escritório em São Paulo disseram, sob anonimato, que o movimento tende a perder força à medida que o ciclo de preços dos grãos e o clima melhorem.
Fonte: Globo Rural