Por Karina Souza
O primeiro (e único) mercado regulado de carbono no Brasil está na berlinda. Em vigor há quatro anos, o RenovaBio ainda não conseguiu estimular a produção de biocombustíveis e, de quebra, enfrenta uma resistência cada vez maior das distribuidoras de combustíveis.
Vibra e Ipiranga, duas das três maiores distribuidoras do País, ampliaram fortemente a pressão contra as regras do programa e ameaçaram entrar na Justiça para se eximirem de comprar CBIOS, os créditos de descarbonização criados no âmbito do RenovaBio.
Se forem às últimas consequências, as duas companhias provocariam feridas insanáveis no RenovaBio, deixando a Raízen — dona dos postos Shell e maior indústria sucroalcooleira do país — praticamente sozinha do lado comprador.
Em 2023, cerca de 20% das metas de compra de CBIOs do programa não foram cumpridas, mostrou um relatório de Gabriel Barra, do Citi, com base em dados do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás). Com Vibra e Ipiranga fora do programa, 60% das metas do RenovaBio virariam pó.
“Quando uma distribuidora não cumpre o RenovaBio, por decisão judicial ou não, isso representa uma vantagem muito grande em relação ao resto dos players que acabam cumprindo o programa”, argumentou uma fonte.
Observadores privilegiados do mercado de energia apostam que Vibra e Ipiranga não chegarão a tal ponto. O discurso de ambas é visto por diferentes agentes muito mais como uma manobra de pressão sobre o Ministério de Minas e Energia e a ANP (Agência Nacional do Petróleo) do que como uma ameaça de fato a ser cumprida.
Romper com o RenovaBio levaria a danos reputacionais relevantes para companhias desse porte, listadas em bolsa. Afinal, enquanto o Brasil se prepara para sediar a COP30 e almeja ser uma potência dos biocombustíveis, os distribuidores sabotam o plano de descarbonização. Ninguém quer essa pecha.
Sendo um blefe ou não, o desconforto de Vibra e Ipiranga com a forma como o RenovaBio vem sendo conduzido vem ecoando. Usinas sucroalcooleiras, distribuidores de combustíveis e agentes do mercado financeiro ressaltam a necessidade de enfrentar a situação de frente, fazendo mudanças no programa para garantir seu cumprimento e continuidade.
As críticas ao RenovaBio
Desde que começou a funcionar, o RenovaBio movimentou cerca de R$ 10 bilhões, segundo dados da Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia), evitando a emissão de 112,9 milhões de toneladas em equivalente de CO2.
Negociados no mercado de balcão, os CBIOs são emitidos pelos produtores de biocombustíveis (etanol e biodiesel, especialmente) e devem ser comprados pelos distribuidores — cada um possui uma meta, definida pela ANP. Cada certificado representa 1 tonelada de CO2 evitado.
As metas do RenovaBio, no entanto, receberam muitas críticas. Desde que o programa surgiu, o Executivo já reduziu as metas de compra de CBIOs por parte das distribuidoras duas vezes, em 2022 e 2023, em momentos de pico dos preços. A intensa volatilidade chacoalha as margens dos distribuidores de combustíveis, um negócio que já opera com margens apertadas. Eliminar esse mecanismo é um ponto visto como fundamental para a sobrevivência do programa.
Pelos cálculos da FG/A, uma consultoria que é referência em açúcar e etanol, a compra dos CBIOs equivale 18% do Ebitda da Vibra e 14%, no caso da Ipiranga, um peso bastante relevante. Os cálculos da consultoria estão baseados nas meta das distribuidoras para o ano e no Ebitda ajustado reportado por elas para o ano fiscal de 2023.
As regras do RenovaBio dão um prazo de doze meses para as distribuidoras cumprirem as metas e atingirem o volume de CBIOs correspondente ao volume de emissões (ou, no jargão, “aposentar” os créditos que fazem parte do programa). Da compra à aposentadoria dos créditos, todo o processo acontece na B3, o que elimina o risco de duplicidade de emissão de CBIOs de largada.
Nesse modelo de negociação, não há uma forma definida para que as distribuidoras comprem seus créditos -podem comprar a quantidade necessária de CBIOs em um mês ou dividir essa compra em 12 meses, por exemplo – o que também provoca volatilidade no preço dos créditos.
Etanol estagnado
“A grande força motriz do programa é o crédito ficar mais caro no momento em que se produz pouco etanol. Esse crédito mais caro, por sua vez, pode fazer com que o produtor invista em novos projetos. Esse era o racional do projeto”, lembrou uma fonte.
O problema é que a realidade não se comprovou assim. Em vários momentos, o Brasil subsidiou os derivados de petróleo, reduzindo a competitividade do etanol brasileiro — um aparente contrassenso para os objetivo de descarbonização da economia.
Não à toa, a mercado de etanol estagnou. De acordo com os dados da ANP, as distribuidoras de combustíveis comercializaram 16 bilhões de litros de etanol hidratado no ano passado, queda de 15,7% desde 2020. Os CBIOs representam, em média, 6% da receita das usinas. Na indústria sucroalcooleira, a falta de competitividade do etanol se somou aos preços remuneradores do açúcar, ampliando a produção do adoçante.
As ideias de Vibra e Ipiranga
Em uma tentativa de sanar o que consideram ser fragilidades do RenovaBio, Vibra e Ipiranga propõem três mudanças principais no programa. Uma das propostas é colocar prazo para a comercialização de CBIOs por parte das usinas, sob o argumento de que evitar a especulação por parte dos produtores de biocombustíveis.
No mercado, muitos argumentam que foi essa especulação que fez o CBIO chegar a sua máxima histórica de R$ 200, em 2022. Para duas fontes do mercado, isso aconteceu principalmente uma das grandes produtoras de etanol do País montou uma posição muito grande de créditos, desequilibrando a relação entre oferta e demanda daquele ano.
A proposta da Vibra e Ipiranga enfrenta a oposição da Unica, a associação que representa as usinas. “Se você colocar um prazo de vencimento para os CBIOs, a gente teria um mercado sem liquidez. Imagine que eu coloco a validade de um ano. O crédito emitido hoje tem um preço, o que foi emitido há 11 meses tem um preço muito menor”, argumentou Luciano Rodrigues, diretor de inteligência setorial Única.
Outra ideia das distribuidoras de combustíveis é abrir o cumprimento do RenovaBio para outros créditos de carbono além dos CBIOs, ampliando a possibilidade de compra de créditos ao longo do tempo, uma proposta que também enfrenta resistências. Seria mais difícil fiscalizar a compra desses créditos, ainda vistos como mais frágeis em termos regulatórios do que os CBIOs, que são regulados pela ANP.
Finalmente, o terceiro ponto envolveria transferir a responsabilidade de compra dos créditos aos produtores de combustíveis, incumbindo a Petrobras dos encargos, nos moldes do que o Low-Carbon Fuel Standard, o programa da Califórnia que inspirou a criação do RenovaBio.
No mercado, muitos discordam da ideia, apurou The AgriBiz. Se concentrar a responsabilidade na mão da Petrobras, até poderia haver um maior equilíbrio de custos entre as distribuidoras (a estatal repassaria o preço mais facilmente, reduzindo a discussão da concorrência desleal). No entanto, o RenovaBio se tornaria um programa de um comprador só. Em outras palavras, um monopsônio.
“Jogar tudo pra Petrobras fazer… no final vai ser um pouco pior do que ter as distribuidoras, porque daí é só um comprador que vai ficar comprando, que vai ser muito mais engessado em forma de dinâmica de mercado, ainda que a Petrobras conseguisse repassar para o mercado, nessa hipótese”, criticou um analista do sell-side.
BNDES pode entrar no jogo?
No limite, há quem proponha outras soluções mais criativas para uma eventual falta de CBios. Boris Gancev, líder da mesa de commodities do Santander, sugere a possibilidade de fazer a liquidação financeira dos créditos.
“Se não tem CBio, o regulador só pode reduzir a demanda, não consegue mexer na oferta. Então, se você tem um dispositivo onde esse distribuidor possa cumprir financeiramente o que faltou de CBio para ele e isso ir para um fundo, administrado pelo BNDES, por exemplo, para usar em projetos de biocombustível para o setor, você dá uma saída para o regulador”, diz.
Uma outra saída seria construir mecanismos de hedge para o título, fomentando o mercado secundário. A tese até chegou a animar a gestora Iwá, de Heloisa Baldin e Gustavo Junqueira, a um fundo, mas a ideia não prosperou diante das incertezas em torno do RenovaBio.
“Existe esse oceano de oportunidades para aproveitar. Mas o que acontece é que, do jeito que está, como é que você vai colocar um produto financeiro e expor os investidores essa incerteza”, disse Baldin.
Enquanto não se chega a um consenso, o RenovaBio continua refém do impasse, com os principais agentes disputando as narrativas. Até Ricardo Mussa, o CEO da Raízen, precisou sair em recentemente. De certo, seus pares na Vibra e Ipiranga pensam diferente.
Fonte: The AgriBiz