O G20 se converteu em palco de uma disputa entre o Brasil e a Europa sobre o papel dos biocombustíveis —principalmente o etanol— no futuro da transição energética.
A União Europeia é historicamente resistente a importar combustíveis verdes produzidos nas Américas.
Delegações europeias que participaram de reunião virtual do grupo de trabalho do G20 sobre bioeconomia, em março, defenderam um argumento visto por membros do governo Lula (PT) como mais uma barreira contra os biocombustíveis, principalmente o etanol.
Trata-se do princípio de uso em cascata para a biomassa. Em inglês, língua em que os trabalhos do G20 são conduzidos, o conceito é conhecido como “cascading principle for biomass use”.
Negociadores veem na investida uma atualização de um já conhecido argumento europeu contrário ao uso dos biocombustíveis produzidos no Brasil e nos Estados Unidos.
Antes, a crítica europeia afirmava que as plantações deveriam priorizar a produção de alimentos em detrimento à de energia.
O princípio do uso em cascata toma outro caminho para, na prática, chegar à mesma conclusão.
De forma resumida, o conceito apresentado pelos europeus é de que deve existir uma hierarquia para o uso da biomassa, de acordo com o valor agregado (calculado por critérios de sustentabilidade e de impacto ambiental e social) de cada setor, como alimentos, produtos químicos e combustíveis.
Por esse raciocínio, tanto a produção de alimentos como a de ração ou fármacos tem mais valor agregado do que os biocombustíveis.
Ou seja, uma plantação deveria dar prioridade primeiro para a comida. Depois, para a produção de alimentos para animais da pecuária. Em seguida, para a produção de móveis. Até que, por último, o uso poderia ocorrer para a produção energética.
Membros do governo Lula discordam. Além de um novo bloqueio ao etanol, eles enxergam na ideia uma forma de a Europa tentar proteger o seu próprio setor agropecuário.
Primeiro, afirmam que tanto o antigo argumento como o novo partem de um pressuposto que só faz sentido na Europa, onde há pouco espaço para plantação e, portanto, uma produção competiria com a outra.
Argumentam que no Brasil o aumento na produção de biocombustíveis não tomaria o espaço das commodities alimentares, uma vez que o país tem muito mais terras produtivas do que o continente europeu.
Depois, afirmam que falta base científica para mensurar o valor agregado e construir os critérios para o princípio de uso em cascata.
As delegações que mais defenderam que o G20 abraçasse o conceito do uso em cascata foram as da Alemanha e da União Europeia, disseram à Folha pessoas que acompanham o tema.
Procurada, a Embaixada da Alemanha afirmou que a bioeconomia pode ter efeitos positivos para o clima, a biodiversidade e a prosperidade, caso seja introduzida da maneira correta.
O governo alemão defendeu o efeito em cascata e disse que a produção de biomassa não pode crescer indiscriminadamente, repetindo o argumento de que o espaço é limitado.
“Uso em cascata envolve, via de regra, uma reutilização de materiais com geração de valor decrescente até um uso energético final ou uma compostagem da matéria-prima. Um exemplo disso seria o uso de uma peça de madeira na carpintaria, transformá-la depois em um móvel que, em seguida, virará uma chapa de compensado e —depois de vários ciclos de vida útil— queimá-la em uma usina termoelétrica”, argumentou.
“No final do uso em cascata, a biomassa pode ser usada para fins energéticos ou como combustível, o que representa uma alternativa às fontes fósseis de energia que preserva o clima e os recursos. Sobretudo em setores em que a transição para a energia elétrica não será fácil a médio prazo —como transporte de cargas de longa distância, máquinas agrícolas pesadas, transporte marítimo e aviação— o uso de biocombustíveis, como o etanol, poderá se tornar uma alternativa eficaz às fontes de energia fósseis, não renováveis”, afirmou.
A missão da União Europeia no Brasil não respondeu até a conclusão desta reportagem.
O G20 é um fórum que reúne as maiores economias do mundo, a União Europeia e, a partir deste ano, a União Africana.
As deliberações do G20 não são de cumprimento obrigatório, mas dão indicações importantes uma vez que o grupo representa mais de 80% do PIB (Produto Interno Bruto) global.
A ideia defendida pela UE e a Alemanha é criticada pelo setor do etanol no Brasil.
“O grande argumento é a relação entre biocombustíveis e o desmatamento e a produção de alimento. São colocadas premissas sem aferições empíricas”, diz o presidente da Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia), Evandro Gussi, que está atuando nas negociações.
Ele lembra que a política nacional de incentivo ao etanol, o RenovaBio, prevê que não haja desmatamento para que o empresário possa ter acesso aos benefícios do programa.
Afirma ainda que muitas das plantações para etanol, no caso a de cana-de-açúcar, são feitas em áreas de pastagens degradadas —ou seja, que não seriam usadas para produção de alimentos.
O Brasil colocou os biocombustíveis como um dos temas centrais da sua presidência no G20. Todos os carros oficiais do evento, por exemplo, são movidos a etanol e adesivados com frases pró-biocombustíveis.
O princípio do uso em cascata começou a surgir com força na Europa por volta de 2015. À época, foi uma reação ao crescimento da importação de madeira dos Estados Unidos.
Mais recentemente, o argumento passou a ser usado de forma mais ampla. Ele baseia, por exemplo, a versão mais recente da Estratégia Bioeconômica da UE.
Na hierarquia de valor agregado dessa estratégia, a produção de biocombustíveis e a bioeletricidade aparecem em último lugar, atrás não só da agricultura voltada para alimentos, mas até da produção de móveis e papel.
“Culturas cultivadas para biocombustíveis e bioenergia […] podem roubar terras e calorias da nutrição humana, com o risco de aumentar o preço das commodities alimentares”, afirma o documento.
Fonte: Folha de S.Paulo