Combustível do Futuro: divisor de águas para a indústria de biocombustíveis no Brasil

Martinho Ono, CEO da SCA Brasil

A Lei do Combustível do Futuro (PL 528/2020), sancionada nesta terça-feira (08/10) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, consolida duas bases estratégicas fundamentais para a indústria de combustíveis: a previsibilidade para a atração de investimentos em energias renováveis e a segurança jurídica para o produtor de biocombustíveis. Essa combinação faz da nova lei um verdadeiro divisor de águas, segundo o economista, especialista no mercado de biocombustíveis e CEO da SCA BrasilMartinho Seiiti Ono.

Após a cerimônia em Brasília, ele avaliou os aspectos mais relevantes da lei para que o Brasil, país que já tem a matriz energética mais limpa do mundo, firme sua liderança na produção de fontes com baixa pegada de carbono e na mobilidade sustentável.

Segundo cálculos do Ministério de Minas e Energia (MME), a moderna indústria brasileira de biocombustíveis, além de outros setores ligados ao transporte mais sustentável – seja ele por via rodoviária, aérea ou marítima – poderá atrair investimentos da ordem de R$ 260 bilhões nos próximos anos. Com a substituição de produtos fósseis por renováveis, prevê-se a mitigação de emissões que totalizam 705 milhões de toneladas de CO2 até 2037.

Muito além do etanol e do biodiesel, o cenário completo da nova lei inclui novas rotas tecnológicas como o biogás, biometano, combustíveis sustentáveis para aviação (SAF, na sigla em inglês), e versões menos poluentes do diesel e hidrogênio minerais.

1) A Lei do Combustível do Futuro prevê aumento na mistura de etanol na gasolina – qual o impacto disso para produtores e consumidores?

A maior participação do etanol em nossa matriz de transportes é crucial para a redução das emissões de CO2. Considero ainda mais relevante o aumento da faixa de mistura, que saltou da atual 18 a 27,5% para 22 a 35%. Significa dizer que a mistura mínima foi elevada em quatro pontos percentuais, de 18 para 22%, o que não é pouca coisa.

Num futuro próximo poderá ser adotada a adição de até 30% de anidro na gasolina, quem sabe até o teto de 35%, medida que demandará estudos de viabilidade técnica por parte de montadoras de automóveis, governo e produtores do biocombustível.

2) A mistura de biodiesel também vai aumentar gradativamente. De que forma isso impacta o mercado interno e a nossa dependência do diesel fóssil importado?

Também avalio esta medida com grande entusiasmo, novamente sobre o ângulo da faixa de mistura, evoluindo dos atuais 14% para 15% em março de 2025 e 20% até 2030. A partir de 2031, é preciso igualmente considerar a possibilidade de o Brasil adicionar até 25% de biodiesel no similar fóssil, o que praticamente neutralizaria o volume de importações que o Brasil faz do produto mineral. Essa previsibilidade será fundamental para que a agroindústria, distribuidores de combustíveis e demais agentes do mercado planejem com antecedência a logística de armazenamento, produção e revenda de biodiesel. Mais adiante, talvez seja viável pensar também no uso de dutos para o biodiesel, a exemplo do que já ocorre com o etanol.

3) Como a produção de biogás e o biometano podem ajudar a descarbonizar a indústria de transportes pesados no Brasil?

Alavancar a oferta de biogás e biometano é outro ponto muito importante da lei, não somente para a descarbonização dos transportes mas também do segmento industrial, ambos dependentes de gás natural e óleo diesel. Desta forma, o Combustível do Futuro determina a mistura de 1% dos dois bioprodutos ao gás natural a partir de 2026, impondo limite máximo de 10%.

Fabricados a partir de resíduos oriundos da produção de etanol, como a torta de filtro e a vinhaça, o biogás e o biometano tendem a despontar ainda mais no portfólio de produtos das usinas de milho e de cana-de-açúcar. Além disso, resíduos presentes nos lixões das grandes cidades também podem servir de matéria-prima para a produção destas duas alternativas de energia limpa.

O biogás e o biometano já substituem com eficácia parte das fontes sujas utilizadas em operações industriais e máquinas agrícolas. Uma novidade é que, no perímetro urbano, empresas de transporte coletivo de passageiros, ou aquelas que atuam com entregas de curta quilometragem, também poderão ser potenciais clientes destas duas soluções bioenergéticas.

4) Aproveitando o ensejo dos transportes pesados, quais são as perspectivas para o diesel verde?

São positivas, pois será uma fonte complementar do biogás e biometano, e que igualmente pode ser fabricado de fontes renováveis, seja biomassa ou gorduras de origem animal e vegetal. Segundo as diretrizes do Combustível do Futuro, a participação volumétrica mínima obrigatória em relação ao diesel fóssil poderá chegar a 3%.

5) E nos combustíveis sustentáveis de aviação (SAF, na sigla em inglês), o Brasil poderá exercer algum papel relevante no mundo?

Tão importante quanto reduzir as emissões no segmento rodoviário, é mitigá-las também no setor aéreo. Responsável por aproximadamente 900 milhões de toneladas de CO2 despejadas anualmente na atmosfera, ou 2% de todas as emissões geradas pela atividade humana, este segmento assumiu o compromisso de zerar as emissões de gases do efeito estufa (GEEs) até 2050. Neste sentido, o Combustível do Futuro institui a obrigatoriedade do uso de SAF para a redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) no setor aéreo. A mistura começará em 1% a partir de 2027 e chegará a 10% em 2037.

Além da sustentabilidade, outra preocupação das companhias aéreas é diminuir custos em relação ao querosene de aviação (QAV), cujo preço está intimamente ligado ao preço do petróleo e suas diversas variáveis econômicas e geopolíticas no cenário internacional. Hoje, este derivado de origem fóssil representa, em média, 40% do custo das operações das companhias aéreas.

Eis uma oportunidade para que o Brasil, graças a sua abundância agrícola e expertise tecnológica consolidada há quase meio século com a produção e uso de etanol, tornar-se um protagonista na produção de SAF em vez de um mero fornecedor de matéria-prima. A sanção do Combustível do Futuro, portanto, possibilitará que o País decole rumo ao SAF graças a três medidas fundamentais: regulamentação, padronização do SAF e atração de investimentos.

6) A nova lei regulariza a questão da captura e armazenamento de carbono, algo que cria mais uma fonte de receita para as usinas produtoras de etanol. De que forma isso pode beneficiar o setor sucroenergético?

Nos Estados Unidos, algumas empresas vêm realizando captura e armazenamento de carbono no solo (CCS, na sigla em inglês). Dentro de um leque de opções, parece-me uma alternativa viável no Brasil. Apesar de constar no texto final da lei, impulsionar projetos semelhantes em nosso país requer o estabelecimento de um marco regulatório. É preciso um ambiente de negócios seguro e pesados investimentos em tecnologias de última geração que atendam as necessidades do Brasil.

Neste contexto, acredito que apostar no armazenamento do CO2 no subsolo seja a medida mais acertada para o Brasil no curto prazo. Segundo estimativas da CCS Brasil, organização que promove a implementação de projetos de captura e armazenamento de carbono, o mercado brasileiro poderá movimentar entre R$ 14 e R$ 20 bilhões por ano com a participação significativa da indústria de etanol.

7) Em linhas gerais, qual a sua avaliação sobre a nova lei?

De todas as metas instituídas, acho relevante sublinhar que o Combustível do Futuro é uma política de Estado pioneira no mundo por estabelecer um conceito inovador de medição das emissões de CO2 advindas dos setores de combustíveis e transportes em duas etapas. A primeira, em breve, medido a quantidade do poluente que foi gerada do poço à roda. A segunda, a partir de 2032, aferindo, num cálculo mais abrangente, as emissões do berço ao túmulo. Ou seja, tudo o que foi lançado na atmosfera do primeiro parafuso ao descarte de peças dos veículos. Do ponto de vista ambiental e de eficiência energética, o Brasil dará mais um exemplo de sustentabilidade no setor automotivo.