
Por Vicente Braga*
Com a ratificação do Acordo de Paris, o Brasil comprometeu-se a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa, assumindo, entre várias outras, a meta de reduzir em 37% as emissões até 2025 em relação aos níveis de 2005.
Em face de tais obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro, foi promulgada a Lei 13.576/2017, referente à Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), buscando conciliar metas de descarbonização com a segurança e previsibilidade do mercado de combustíveis.
Em linha com os compromissos internacionais firmados e com preceitos constitucionais (arts. 170, VI; 225, caput e §1º, V, da CF/88), o RenovaBio instituiu um regime de metas anuais de redução das emissões de gases causadores do efeito estufa, desdobradas anualmente para todos os distribuidores de combustíveis, em metas individuais comprovadas por meio da quantidade de Créditos de Descarbonização (CBIOs) aposentados por ano, correspondendo cada CBIO a uma tonelada de gás carbônico equivalente e sendo a aposentadoria o processo que visa à retirada definitiva de circulação do CBIO, resultando diretamente na redução de emissões de gases causadores do efeito estufa.
No contexto dessas medidas, a Lei 15.082/2024 introduziu o art. 9º-B à Lei 13.576/2017. Pela nova norma, o produtor, o formulador, a empresa comercializadora, o importador e o distribuidor ficam vedados de comercializar com distribuidor inadimplente com suas metas individuais que figure em “lista de sanções” publicada e atualizada pela ANP.
O dispositivo legal em questão entrou em vigor em 30 de março de 2025, após vacatio legis de 90 dias, e ensejou intensa controvérsia jurídica quanto à possibilidade de inclusão, nessa lista, de distribuidores cujo descumprimento das metas teria ocorrido em exercícios anteriores à sua vigência.
A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) interpretou ser possível tal inclusão e divulgou a primeira versão da lista em 21 de julho. Em sequência, algumas empresas obtiveram decisões liminares[1] determinando a retirada de seus nomes, com fundamento em alegada retroatividade proibida da norma.
Para um entendimento mais adequado da controvérsia, necessário notar que a própria legislação infralegal esclarece que a inclusão na lista exige prévia decisão de primeira instância em procedimento administrativo, com observância do contraditório e da ampla defesa (art. 6º-A, §4º, do Decreto 9.888/2019).
Além disso, a sistemática positivada pelo mesmo decreto, com o acréscimo do art. 6º-A, §6º (incluído pelo Decreto nº 12.437/2025), prevê expressamente a possibilidade de o distribuidor adimplir suas metas “a qualquer momento” mediante aposentadoria de CBIOs e solicitar a exclusão da lista, cabendo à ANP o prazo de cinco dias úteis para efetivar a retirada e atualizar a publicação.
Pertinente ainda destacar que, previamente à inclusão na lista, foi efetivada, nos termos da Decisão de Diretoria 390/2025 (ocorrida na 1.162ª Reunião de Diretoria Colegiada da ANP), a notificação prévia de todos os agentes econômicos que atendiam o critério para inclusão na lista, oportunizando que, desde já, adimplissem suas metas e não fossem incluídas.
Resta claro que o que fundamenta a inclusão das empresas distribuidoras na lista não é apenas uma conduta pretérita perfeitamente encerrada, mas, ao contrário, também a conduta presente e atual da inadimplência ainda permanente, que pode ser regularizada “a qualquer momento”, com a consequente exclusão da lista no curto prazo de cinco dias úteis.
Com efeito, o que se veda é a continuidade da comercialização, posteriormente à entrada em vigor do art. 9º-B da Lei 13.576/2017 (e condicionado à existência de decisão em processo administrativo com contraditório e ampla defesa), enquanto persiste o inadimplemento, sendo certo que a situação irregular perdura no presente, ainda que a obrigação tenha origem em metas de períodos anteriores, cessando a inclusão na lista com a regularização.
A distinção entre retroatividade inautêntica (retrospectividade) e retroatividade vedada é elucidativa aqui. Na retroatividade inautêntica, a lei atribui efeitos jurídicos novos a fatos pretéritos, sem, contudo, transformar ou negar os atos já praticados; ao regular o exercício de um direito — ou limitar seu alcance — a partir da vigência da norma, a lei age prospectivamente sobre situações que persistem no presente.
Essa solução encontra eco no precedente do Supremo Tribunal Federal relativo às ADCs nº 29 e 30 (Lei da Ficha Limpa), em que a corte reconheceu a constitucionalidade da retrospectividade inautêntica quando a lei estabelece limitação prospectiva ao exercício de direitos em face de fatos anteriores.
Como observou o ministro Luiz Fux, “a aplicabilidade da Lei Complementar 135/10 a processo eleitoral posterior à respectiva data de publicação é, à luz da distinção supra, uma hipótese clara e inequívoca de retroatividade inautêntica, ao estabelecer limitação prospectiva ao ius honorum (o direito de concorrer a cargos eletivos) com base em fatos já ocorridos. A situação jurídica do indivíduo – condenação por colegiado ou perda de cargo público, por exemplo – estabeleceu-se em momento anterior, mas seus efeitos perdurarão no tempo. Portanto, ainda que se considere haver atribuição de efeitos, por lei, a fatos pretéritos, cuida-se de hipótese de retrospectividade, já admitida na jurisprudência desta corte”.
Analogamente, a vedação à comercialização com distribuidor inadimplente, prevista no art. 9º-B, não se configura exatamente como uma sanção stricto sensu, mas medida administrativa-regulatória voltada a assegurar a eficácia do programa de metas e a confiança no mercado de CBIOs. Trata-se de norma que cria um requisito para o exercício de determinada atividade econômica em setor regulado, incidindo prospectivamente a partir da sua vigência, ainda que fundado em descumprimentos pretéritos cuja situação irregular persista no presente.
A interpretação que impediria a administração de acionar, após a vigência, um mecanismo de execução eficiente contra inadimplementos anteriores implicaria em fragilizar a concretização da política pública de descarbonização, apontando a interpretação teleológica e sistemática da norma para a admissibilidade da inclusão na lista, desde que respeitados os requisitos processuais e garantias fundamentais.
Ademais, considerando a proteção do interesse público, a suspensão do mecanismo que permite excluir do mercado agentes que não cumprem metas enfraquece a eficácia das políticas ambientais e sanitárias e compromete os objetivos constitucionais e internacionais assumidos pelo Estado brasileiro.
A política de descarbonização é instrumento de tutela ambiental com repercussões em saúde pública e bem-estar coletivo; o aperfeiçoamento de mecanismos preventivos e executórios pela administração traduz a obrigação constitucional de proteção ao meio ambiente.
Relevante reiterar que a construção normativa adotada contém salvaguardas processuais e operacionais, considerando a exigência de procedimento administrativo sancionador de primeiro grau com contraditório e ampla defesa, a possibilidade, “a qualquer tempo”, de regularização e retirada imediata da lista mediante adimplemento e o prazo curto e objetivo para atualização da publicação pela ANP.
Assim, a inclusão de distribuidores em lista de sanções pela ANP, para fins de vedação da comercialização com inadimplentes e de restrição à importação direta, pode ser compreendida como aplicação legítima de medida administrativa-regulatória prospectiva, ainda que fundada em descumprimentos pretéritos.
*Presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (Anape), advogado, procurador do Estado do Ceará, doutor em Direito Processual Civil pela USP e pós-doutor em direito público pela UERJ.
Fonte: Jota