Sim, nós colocávamos fogo na cana

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Por João Botão*

Sim, nós colocávamos fogo na cana. A queima antes da colheita era uma atividade praticamente obrigatória no setor sucroenergético. O objetivo era, principalmente, melhorar as condições para os trabalhadores. Para se ter uma ideia, um cortador de cana cortava, em canavial cru ou sem queima, cerca de três toneladas por dia. Enquanto em um canavial queimado esse número subia para 12 toneladas por dia. Quatro vezes mais rendimento. Portanto, um catalizador operacional barato. Porém, não era só chegar e colocar fogo.

Quando ocorria, essa queima era feita de maneira planejada, direcionada aos canaviais no ponto de colheita. Afinal, depois de queimada, a cana começa a se deteriorar. Se não colhida em 72 horas, as perdas de qualidade são tamanhas que praticamente inviabilizam seu uso para processamento industrial. Logo, pegar fogo de forma não planejada era (e é) sinônimo de prejuízo.

O maior interessado em que isso não aconteça é o produtor de cana. É o patrimônio dele em jogo. Pense na sua atividade econômica, no seu negócio. Você colocaria fogo? Acredito que não, certo? A não ser que você queira acabar com tudo. Porque o produtor de cana, o produtor rural, faria?

Até por isso, o setor da cana é o maior brigadista do país. O segmento investe mais de R$ 600 milhões por ano em combate e prevenção de incêndios, conta com equipes dedicadas e capacitadas para esse fim e tem mais de R$ 1 bilhão imobilizado em equipamentos como caminhões pipa ou bombeiro nas lavouras. Se tem usinas na sua região, é possível que o valor destinado ao combate a incêndios seja superior à verba para o corpo de bombeiros do município.

A queima prévia e planejada, quando ocorria, também prezava por aspectos de segurança. Ela tinha que ter autorização dos órgãos competentes. As equipes responsáveis preparavam a área que ia receber a queima, com promoção de aceiros, por exemplo. Afinal, o fogo não podia se alastrar para canaviais que não estivessem no ponto, dados os prejuízos já mencionados. Ela era feita em períodos específicos, geralmente à noite, quando as temperaturas estavam mais baixas. Sim, nossas mães sofriam. O lençol do varal amanhecia todo sujo em função dos “carvõezinhos”.

Eu não sei se você percebeu, mas, todas as vezes que me referi à queima prévia-planejada-segura, eu conjuguei os verbos no passado. “Colocávamos”, “fazíamos”, “era realizado”. Isso porque essa prática ficou no passado. Não se pode afirmar que não exista no Brasil, mas, sim, que é algo pontual, regional. No caso, me refiro ao Nordeste canavieiro que, em função da presença de relevos acidentados (especialmente no sul de Pernambuco e norte de Alagoas, os dois principais Estados produtores da região) que impossibilitam a mecanização, ainda se faz o uso da queima prévia-planejada-segura.

Para se ter ideia dessa (pouca) expressividade, em números macro, a área de colheita de cana no Brasil é de 8,3 milhões de hectares. O Nordeste concentra cerca de 10% da produção, que ocorre em 830 mil hectares. Desse volume, 70% ainda é colhido manualmente, portanto, com emprego da queima prévia-planejada-segura. O que resulta em 580 mil hectares, ou o equivalente a 7% da área de colheita no Brasil. Novamente, algo pontual, regional. O restante da colheita, os 93%, ou 7,8 milhões de hectares, são colhidos sem queima e de forma mecanizada. E isso ocorre há pelo menos dez anos.

O avanço da mecanização e a redução das queimadas prévias-planejadas-seguras deu-se a partir de 2007, com a assinatura do Protocolo Agroambiental de São Paulo. Um acordo voluntário estabelecido entre governo, usinas e produtores para antecipar os prazos para o fim do uso do fogo prévio-planejado-seguro. Os originais constam na Lei 11.241 de 2002. Aliás, de acordo com essa lei, em áreas mecanizáveis (declividade inferior a 12%), o uso do fogo está proibido desde 2021, seja ele prévio-planejado-seguro ou não. Sendo assim, quando há incêndio no canavial, a responsabilidade é do produtor, que fica sujeito a multas. Novamente, tem sentido ele ser o responsável pela queima?

Ainda sobre o acordo, apesar de ser algo estadual – e por si só já tem muita relevância, já que mais de 50% da produção de cana está em São Paulo –, ele acabou tendo um efeito-cascata, atraindo a adesão do centro-sul canavieiro como um todo. Isso porque as entidades que representam o setor produtivo, como Unica e Orplana, têm associados e, consequentemente, atuação em outros Estados além de São Paulo. Portanto, acabou sendo um movimento setorial, e não estadual.

Dado o histórico, é compreensível que as pessoas comuns (que não são do meio) associem a queimada aos produtores. Nós realmente promovíamos a queima prévia-planejada-segura dos canaviais. Mas ela ficou no passado. O setor evoluiu. O que vimos acontecer nos últimos meses foram queimadas criminosas. Um crime em que o produtor é a vítima, não o criminoso. Um crime que muitas vezes vem acompanhado de outro: calúnia e difamação. Afinal, desinformação e narrativas ideológicas sobrepondo fatos e dados também são incêndios na sociedade.

*Sócio-diretor do Pecege Consultoria e Projetos.

Fonte: Globo Rural