
O Rio Grande do Norte colheu, na safra 2024-2025, o maior volume de cana-de-açúcar da história recente do estado: 4,5 milhões de toneladas processadas, com geração superior a R$ 1 bilhão, segundo dados da Secretaria de Estado da Agricultura, da Pecuária e da Pesca (Sape-RN). A marca confirma a recuperação de uma cultura historicamente ligada ao desenvolvimento econômico potiguar. O crescimento é resultado direto de boas chuvas no período, aumento da área plantada, entrada de novos produtores no setor e de incentivos que favoreceram a expansão da indústria no estado.
Segundo José Vieira, presidente da Federação da Agricultura, Pecuária e Pesca do RN (Faern), a safra recente foi marcada por chuvas bem distribuídas ao longo do ciclo, o que favoreceu o desenvolvimento das lavouras. “Diferentemente de anos anteriores, em que períodos de veranicos impactaram negativamente a produtividade, a regularidade das precipitações proporcionou melhor formação da biomassa e acúmulo de sacarose, otimizando a colheita”, avalia, ressaltando também o papel das melhorias de manejo agrícola e adoção de variedades adaptadas ao clima.
De acordo com Guilherme Saldanha, secretário da Sape-RN, a cana ocupa entre 32% e 35% da área plantada no estado, sendo um dos principais cultivos no RN. “É uma das atividades que mais cresceram nos últimos anos. Com a cadeia e a indústria incentivadas, você gera a demanda por cana-de-açúcar e, consequentemente, para os produtores plantarem. A gente saiu de uma produção de 2,5 milhões de toneladas há cinco, seis anos, para batermos agora 4,5 milhões. Nunca o estado produziu tanto. É um recorde”, afirma.
A cana-de-açúcar é uma matéria-prima essencial para a produção de dois insumos fundamentais na economia global: o açúcar, amplamente consumido na alimentação humana, e o álcool, que pode ser utilizado tanto na fabricação de bebidas alcoólicas, como cachaça, vinho e cerveja, quanto como combustível automotivo, na forma de etanol. Este último, inclusive, tem ganhado protagonismo em razão das políticas de transição energética e da busca por fontes renováveis.
“[Ela é estratégica] desde o ponto de vista econômico, com atividades que geram muito emprego, renda e oportunidade. Do ponto de vista de abastecimento do combustível do estado, nós temos uma refinação que precisa de álcool para ser incorporado à mistura da gasolina e é necessário que haja um combustível próximo à rede de consumo”, ressalta o secretário.
No Rio Grande do Norte, a maior concentração de áreas plantadas está no Litoral Sul e na região da Grande Natal, com destaque para os municípios de Arez, Goianinha, Ceará-Mirim, Pureza e Touros. Essas regiões se beneficiam das chuvas regulares, fator essencial para a cana, que ainda é, em boa parte, cultivada sem irrigação.
O crescimento expressivo da atividade tem provocado transformações no perfil do produtor. De acordo com Hermano Augusto de Almeida, presidente da Associação dos Plantadores de Cana do RN (Asplan-RN), o setor vem se modernizando e adotando novas tecnologias nos últimos anos. “Todo mundo está procurando tecnologia, melhores variedades de cana, melhor adubação e mecanização. Isso impactou diretamente na qualidade da cana fornecida às usinas”, afirma Hermano. Segundo ele, a mecanização da colheita tem sido uma alternativa à escassez de mão de obra, com mais de 70 máquinas atuando no estado.
O empresário rural Marcelo de Morais Coutinho, que planta cana na Fazenda Baldum, em Arez, desde 1988, confirma a expansão recente da atividade. “O que fez a safra 2024-2025 ser recorde foi o número de novos produtores que ingressaram no setor. Muitos abriram áreas de pastagem para plantar cana”, observa. Na propriedade dele, são cerca de 132 hectares dedicados à plantação de cana-de-açúcar, com produtividade média de 60% por tonelada.
Na Fazenda Baldum, o terreno irregular impede a mecanização total das atividades, o que contribui para a geração de 60 empregos diretos durante o período da safra. Durante o ano de 2024, o acumulado de chuvas no local foi de 637mm. Sem máquinas de irrigação própria, a atividade depende completamente do clima, que necessita não apenas de um acumulado total, mas que as precipitações sejam bem distribuídas em períodos importantes, como os meses de abril e maio.
A valorização da cultura da cana, inclusive, ultrapassa os aspectos econômicos e produtivos. Para o historiador Alexandre Rocha, ela é uma das bases da formação social, política e cultural do Rio Grande do Norte. “A economia da cana está presente desde o período colonial. Era a atividade que garantia o domínio da terra e formava os núcleos de poder. Ela moldou o território, as relações sociais e até a paisagem que ainda vemos hoje no Litoral Sul e no Vale do Ceará-Mirim”, explica.
No Brasil, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) registrou, em 2024-2025, a segunda maior produção de cana-de-açúcar da história, com um total estimado de 676,96 milhões de toneladas. Diferentemente do Rio Grande do Norte, que registrou recorde, o acúmulo do Nordeste deve ter uma queda de 3,7% em relação à safra anterior, com 54,4 milhões de toneladas.
Desafios na safra 2025/2026
Apesar do recorde contabilizado no RN, as expectativas para o ciclo 2025-2026, cuja safra começa entre julho e agosto, são menos otimistas. A irregularidade das chuvas observada nos últimos meses já comprometeu parte da lavoura e pode resultar em uma redução média na produtividade, segundo estimativas preliminares da Asplan-RN. “A estiagem já passa de 45 dias. Isso vai impactar diretamente a produção de matéria-prima para açúcar e etanol. Todo mundo vai ter queda”, afirma Hermano de Almeida, presidente da Associação.
Como empresário rural, Marcelo Coutinho confirma que o maior gargalo na nova safra está associado ao clima. “Choveu bem em janeiro e fevereiro, mas praticamente nada em abril e maio. Faltaram chuva na fase de terminação da cana, o que impacta diretamente na produtividade. A produção vai cair, e isso não é falência, é questão de clima mesmo”, explica. Ele projeta que o volume de cana na próxima safra será menor, o que deve gerar uma redução de aproximadamente 20% na produtividade na fazenda em relação a 2024/2025.
Outro ponto que limita o ganho de produtividade no RN é o uso de cultivares tradicionais e menos adaptadas às condições do semiárido. José Vieira observa que o estado carece de programas robustos de melhoramento genético voltados à cana-de-açúcar, como existem em polos consolidados do país. A ausência de variedades específicas para solos menos férteis e climas mais secos compromete o desempenho das lavouras, ainda que haja esforços pontuais de órgãos como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para desenvolver sementes mais resistentes.
Diante dessas limitações, o papel do poder público tem sido decisivo para a retomada da cultura no estado. De acordo com Guilherme Saldanha, o Governo do RN vem investindo em medidas de incentivo ao setor que buscam desburocratizar processos, facilitar o licenciamento ambiental, oferecer segurança jurídica para investidores e ampliar a atratividade da atividade no estado. “Está sendo criado um ambiente que as pessoas estão investindo. A gente cresceu 100% em relação a 2017”, afirma o secretário.
Além da segurança jurídica, o setor aponta para uma necessidade de ampliar a capacidade de moagem, em especial no litoral Norte. “O setor conta com mais de mil produtores, que poderiam aumentar ainda mais esse volume se as usinas fossem capazes de absorver um volume maior”, destaca Vieira. Para isso, a Sape-RN está buscando investimentos para a instalação de uma usina na área que atualmente sofre com a ausência de uma unidade processadora. “Estamos atraindo investidores para instalação de uma nova usina e acredito que entre 2025 e 2026 vai estar se instalando um grupo”, projeta Guilherme Saldanha.
José Vieira acredita que uma das respostas para o crescimento do setor está na diversificação e no reposicionamento da produção em nichos de maior valor agregado, como a cachaça premium e produtos orgânicos. “Acompanhando a demanda crescente por alimentos naturais, esses segmentos podem garantir maior retorno financeiro e valorização da produção artesanal”, aponta. Além dos nichos gourmet, a bioeconomia e a energia renovável também despontam como oportunidades para o setor sucroenergético.
Outro caminho apontado é o agroturismo, uma ideia que se alinha com a proposta do historiador Alexandre Rocha, de maior integração entre a população e sua história. “Imagina se a gente tivesse passeios para conhecer os engenhos e as estruturas. É a formação econômica do Rio Grande do Norte”, comenta. Já Vieira vê nos roteiros turísticos uma chance de resgatar a tradição e impulsionar a economia local. “O agroturismo pode explorar engenhos históricos, destacando o processo artesanal de produção da cachaça e da rapadura, agregando valor à cultura”, afirma.
Embora o destino da produção potiguar ainda seja majoritariamente o mercado interno, já há uma crescente integração com o mercado nordestino. Parte da cana produzida no estado é comercializada com a Paraíba, principalmente por produtores de Arez, Goianinha e Canguaretama, que vendem para usinas na região de Mataraca. Cerca de outras três exportações ainda ocorrem por ano.
Fonte: Tribuna do Norte