
Por Giully Regina
Em 12 de junho, o RenovaBio comemorou cinco anos da primeira venda créditos de descarbonização (CBios). Em funcionamento desde 2020, o programa tem como principal objetivo diminuir as emissões de carbono no setor de transportes e impulsionar a produção de biocombustíveis, como etanol e biodiesel.
De lá para cá, entretanto, o mercado brasileiro passou por muitas mudanças. Assim, a política pública teve desde alterações nos prazos para a entrega das metas anuais até, mais recentemente, o endurecimento das penalidades para as distribuidoras que não cumprem com sua parte no programa.
Recentemente, por exemplo, o preço dos CBios vive uma sequência de quedas. Na segunda quinzena de junho, os créditos foram negociados por R$ 59,58, em média, queda de 30,2% ante a média histórica. As emissões, por sua vez, subiram 0,4% na comparação anual, totalizando 2,29 milhões de créditos escriturados no período.
Para falar sobre o cenário atual do programa, a líder sênior da rede agro corporate do Santander, Caroline Perestrelo, estará presente na oitava edição da Conferência NovaCana. O evento acontecerá em São Paulo (SP), nos dias 15 e 16 de setembro.
Perestrelo será uma das palestrantes do painel “RenovaBio em ponto de inflexão: como maximizar valor e mitigar riscos”, juntamente com o presidente da Federação Nacional das Distribuidoras de Combustíveis, Gás Natural e Biocombustíveis (Brasilcom), Abel Leitão, e o diretor comercial da Alta Mogiana, Luiz Gustavo Junqueira.
Formada em administração de empresas, Perestrelo tem passagens profissionais pelos bancos Safra, Sudameris e ABN AMRO, atuando há mais de 18 anos no Santander. Ela também tem mais de 20 anos de experiencia no agronegócio, e atualmente lidera uma rede com mais de 500 especialistas dedicados ao atendimento de clientes do setor no país. Em 2023, Perestrelo foi reconhecida pela Forbes como uma das 100 mulheres poderosas do agro no Brasil.
Juntamente com o especialista de mesa de comodities do Santander, Gabriel Machado dos Reis, ela conversou com o NovaCana sobre os temas que serão trazidos no evento.
A seguir, leia a entrevista completa.
Após as flutuações vivenciadas pelo RenovaBio – com o alongamento de prazos e a redução de metas, por exemplo –, qual é o cenário atual do mercado de CBios? Será possível atingir a meta desse ano, que soma 49,36 milhões de títulos?
Gabriel Machado dos Reis: Na visão de preço, é fácil acompanhar todas as mudanças que aconteceram no programa. O alongamento da meta, por exemplo, fez o preço cair consideravelmente em 2022. Mais recentemente, no final do ano passado, tivemos a Lei dos CBios, que também teve uma influência grande na variação dos valores. Mas, falando do cumprimento da atual meta, quando observamos quantos CBios já foram aposentados e quantos estão nas mãos da parte obrigada do programa, nós vemos quase metade deste objetivo sendo cumprido. Fora isso, a geração de CBios vem sendo muito forte em 2025. Então, temos um estoque grande com os emissores primários: estamos falando de, mais ou menos, 16,3 milhões de CBios. Considerando toda a geração que teremos no segundo semestre deste ano, isso traz um pouco de segurança para alcançar a meta.
Caroline Perestrelo: Acreditamos que a relação entre oferta e demanda está equilibrada para o ano. Acho que um dos questionamentos que sempre temos em relação ao programa é se, de fato, teremos oferta suficiente para cumprir a meta. O que nós demonstramos, em termos de números, é que tem oferta suficiente de CBios e que isso não é um risco para o cumprimento pela parte obrigada.
Nas últimas quinzenas, o preço dos créditos tem registrado quedas. Quais foram os fatores que levaram a esse movimento e o que poderia reverter esse quadro?
Reis: O preço do CBio respeita muito a relação de oferta e demanda. Quando você tem uma alta na busca para a compra do crédito, o valor tende a aumentar; e, quando você tem uma oferta muito maior na ponta vendedora, há uma pressão. Hoje, temos uma quantidade relativamente alta na mão de emissor primário. E observamos também, no começo do ano, que alguns compradores aumentaram o ritmo de compra no primeiro trimestre porque houve um receio de que, com as sanções da Lei dos CBios, os inadimplentes não conseguiriam comprar biocombustível e nem combustível após 90 dias, o que poderia levar a um incremento do preço. Posteriormente, os estoques aumentaram do lado do emissor primário e, consequentemente, houve uma venda maior.
Perestrelo: Olhando para junho do ano passado e deste ano, houve uma queda de cerca de 20% [no preço médio do CBio]. Em 2024, o patamar estava em R$ 77 e, agora, o preço está a R$ 60, na média. Esse contexto já mostra que existe uma oferta maior. Por outro lado, algo que sempre trazemos para as distribuidoras é que é importante eles estarem no jogo, porque a efetividade de nível elevado de escrituração contínua do CBio não é um fato. Mas, por enquanto, a queda se justifica pelo volume de CBios dispostos. Não tem outro motivo, é a oferta e demanda. E é uma retração ano contra ano importante.
As distribuidoras têm buscado liminares na justiça para evitar a obrigatoriedade do programa e, agora, o Ministério de Minas e Energia (MME) está tentando, junto ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), reverter essas decisões. Isso também tem afetado o mercado?
Reis: Eu acho que acaba afetando o preço porque, em um cenário onde você não tem o cumprimento do programa por alguma das partes obrigadas, há uma insegurança para as demais distribuidoras, que vêm adquirindo e aposentando os CBios. Com algumas das companhias entrando na justiça para não precisar comprar os créditos, há uma demanda menor, o que pode acabar impactando os valores. Com a lei que foi aprovada no ano passado, temos uma expectativa de que muitos inadimplentes dos anos anteriores possam participar do mercado neste ano. E isto também teria um impacto direto no preço pelo aumento da demanda.
Perestrelo: A judicialização afeta a liquidez do mercado, por isso há um pouco de impacto. E, sem dúvida nenhuma, ela traz uma insegurança jurídica ao programa. Acho que é um ponto das discussões, pois levanta questões como: qual é o nível de fiscalização? Qual é o impacto no mercado? Qual é a discussão sobre o futuro do programa? Acho que essas liminares poderiam deixar o programa em situação de questionamento.
O RenovaBio agora tem novas penalidades, como a classificação da inadimplência como crime ambiental e até o impedimento de comercialização pelas distribuidoras. Vocês acreditam que essas mudanças poderão melhorar a situação do descumprimento das metas pelas partes obrigadas? Em quanto tempo poderemos sentir realmente o efeito dessas alterações?
Reis: A lei trouxe o endurecimento das penalidades para quem não cumpre o programa e, posteriormente, teve um entendimento de que não seria possível retroagir. Então, teremos que observar o movimento ao final do ano porque as distribuidoras têm até o último dia útil de 2025 para o cumprimento da meta. Teremos que aguardar a divulgação da lista das companhias que não cumpriram o programa, que deve ser publicada pela ANP no início do próximo ano. No começo de 2026, veremos a aplicação das multas e das penalidades previstas para quem não cumpre o programa, com algumas companhias não conseguindo comprar combustível ou biocombustível por estarem inadimplentes [com o RenovaBio].
Perestrelo: A mudança da lei aconteceu, principalmente, com as multas mais altas, chegando a até R$ 500 milhões. Até então, o programa compreendia que o valor desta penalidade era muito importante para distribuidoras menores; mas para algumas maiores, talvez nem tanto. Então, o tamanho monetário dessa multa agora é bem relevante para a discussão. Além de ser crime ambiental, pois esse ponto também agrava a qualidade do programa.
Mas, mesmo com o endurecimento destas penalidades, talvez seja possível que as distribuidoras continuem buscando a proteção jurídica. Como isso afetaria o programa no curto e médio prazo?
Perestrelo: Para ser bem direta: as distribuidoras provavelmente vão continuar buscando as liminares, mas mantendo o cumprimento; elas não podem buscar proteção jurídica e não manter o cumprimento [das metas individuais]. Acredito que as distribuidoras têm que ter voz para a construção do RenovaBio. O programa trabalha com um plano de dez anos e, para ele ter continuidade, não deve ser estático, ainda mais por ser um programa inovador. Não sei se o caminho é judicializar ou se, de fato, seja possível – via governo, via MME – ter um modelo em que todas as partes se entendam. O RenovaBio não deveria ser um peso para a distribuidora e nem para o consumidor do combustível fóssil. Parece que o programa estaria invalidando ou enfraquecendo a distribuidora, mas não é essa a intenção. A distribuidora é um meio por onde passa essa validação do fóssil ou do biocombustível. Por isso é que eu entendo que elas podem continuar judicializando, mas têm que cumprir as metas. Acho que essa discussão que tem que ser feita.
Reis: Eu complementaria que as distribuidoras que entraram com as liminares, em algum momento, serão julgadas. Neste cenário, em que essas companhias tenham que comprar os CBios das metas anteriores de forma retroativa, você vai ter um efeito grande no caixa delas. Como a Caroline colocou, tem distribuidoras que, mesmo com as liminares, continuaram comprando CBios.
Há alguns questionamentos rondando a efetividade do RenovaBio. Artigos apontam que o consumo de etanol hidratado não teve o aumento esperado, mas sim uma queda de participação no mercado e que, nesse caso, o RenovaBio seria apenas uma remuneração para produtores de biocombustíveis e uma penalidade para distribuidoras. Qual é a visão de vocês sobre a eficiência real do programa?
Reis: O programa foi criado com a intenção de reduzir a emissão de gases de efeito estufa (GEE) por meio de uma alteração da nossa matriz energética, transitando dos combustíveis fósseis para os biocombustíveis. Então, teria que acontecer um incremento no consumo de biocombustível, tanto da mistura do biodiesel no diesel, quanto do etanol anidro na gasolina e, principalmente, do hidratado. Em relação ao etanol, estamos vendo um incremento na produção. O consumidor final pode estar abastecendo com gasolina ao invés de etanol, mas a substituição da nossa matriz energética de combustíveis fósseis para os biocombustíveis é uma pauta super relevante, principalmente no longo prazo. Eu acho que o programa é uma forma de incentivar isso.
Perestrelo: De alguma forma, tivemos um crescimento na produção de etanol no país desde o início do programa, em especial com a entrada das usinas de etanol de milho. Desde o começo do RenovaBio, foram aposentados cerca de 150 milhões de CBios. Então, o foco do programa, que é evitar emissão, foi atingido. Se não tivesse remuneração para a ponta produtora, será que não teria sido produzido ainda mais açúcar ao invés de etanol? Além disso, quando a gente coloca o preço do CBios versus o valor na bomba, não alcançava os R$ 0,10 de diferença.
Reis: A conta que a Caroline está comentando é feita com base no preço médio dos CBios que foram negociados, fazendo uma transferência em centavos para ver o impacto do preço no combustível fóssil, seja gasolina ou diesel. Não dava nem R$ 0,05 por litro. Claro, tem um impacto na inflação, mas acho que não é um incremento tão relevante assim para o preço do combustível fóssil a ponto de não permitir que o programa seja cumprido.
Do lado das usinas, os créditos geram realmente um rendimento significativo? Como ele poderia ser aplicado em novos investimentos?
Reis: Hoje, o programa não tem nenhuma obrigatoriedade de que esse recurso seja transformado em investimentos ou que seja destinado, de alguma forma, para melhorar a produção e eficiência. Mas sabemos que o recurso proveniente da venda dos créditos se torna receita e está abastecendo o caixa das usinas, o que pode permitir que elas melhorem o seu processo de alguma forma.
Perestrelo: Ele pode ser um incentivo importante sobre investimentos para o biogás, por exemplo. Então, quando pensamos em continuidade da matriz energética mais limpa, por que não biogás, biometano, outras fontes, não serem impulsionadas também? E vale dizer que o CBio já contempla essas opções. É claro que precisa de demanda de fato; só o CBio não vai validar esse investimento.
Há realmente um incentivo financeiro forte o bastante para que as usinas continuem emitindo os créditos ou existe uma possibilidade de que o mercado passe por uma queda no número de emissões, considerando este e os próximos ciclos?
Reis: Os CBios são uma receita que agrega na margem que a empresa já tem com as suas produções. Eu entendo que, para o emissor primário, é um grande incentivo para que o programa tenha continuidade. Acho que também há um incentivo para que os produtores tentem ser mais eficientes em seus processos, visando diminuir custos de produção. O “core business” deles já é esse: produzir biocombustível. Então, o RenovaBio é um grande incentivo para que eles continuem produzindo e sejam ainda mais eficientes.
A promessa do mercado de futuro de CBios ainda não se tornou realidade. É possível que esse recurso acabe não saindo do papel? O que poderia renovar o interesse?
Reis: É do interesse de todas as partes que operam CBios ter a possibilidade de negociar um preço futuro. Pensando na ponta compradora, você consegue ter uma previsibilidade melhor dos seus fluxos de caixa, dos pagamentos que precisa honrar. Mas, além disso, também traz previsibilidade para os vendedores que, já sabendo a quantidade de recurso que seria recebido em um período futuro, conseguem se comprometer eventualmente a melhorar o processo produtivo de alguma forma. Hoje, o CBio é negociado apenas no mercado à vista, então a negociação no mercado futuro seria um ganho para todos os lados.
Mas ainda não há uma previsão?
Reis: Ainda não. A B3 organizou uma conversa com todas as partes, com as casas e bancos que prestam serviços de escrituração e realizam compra e a venda de CBios, incluindo também os emissores primários e alguns participantes da parte obrigada. Obviamente, é o interesse de todos, mas não existe nenhuma previsão para isso sair do papel.
Existe também um projeto que envolve o CBio passar por uma “tokenização”.
Reis: A tokenização vai ser importante para permitir que o ambiente de negociação seja estendido 24 horas por dia, sete dias por semana. Vai ter uma validação mais eficiente do lastro de CBios e isso tudo gera uma diminuição dos custos. No longo prazo, ter o CBio de forma tokenizada traz uma segurança tecnológica para o programa, além de ampliar os horários de negociação.
Você poderia fazer um último comentário a respeito das mudanças de regulação pelas quais o RenovaBio deve passar?
Reis: O programa é relativamente novo, cerca de cinco anos; é natural que sejam realizadas melhorias. Tivemos algumas mudanças de entendimento, mas também tivemos governos diferentes, com interesses diferentes. Na visão do Santander, queremos a continuidade do RenovaBio, para apoiar essa mudança da nossa matriz energética. Então, do nosso lado, tentamos trazer a maior transparência possível e queremos apoiar todas as partes, sejam compradores ou vendedores. O Santander foi o primeiro escriturador e temos, ainda hoje, o maior marketshare de negociação e de escrituração de CBios. O banco anda de mãos dadas com o programa. O RenovaBio é passível de mudanças; temos que estar sempre pensando em melhorias para deixá-lo o mais aderente possível para a finalidade que ele foi criado. É preciso estar em contato com todos os participantes e com as alçadas competentes do governo que implementa essas mudanças para tentar sempre evoluir.
Fonte: NovaCana