Monofasia do etanol: primeira etapa é concluída

Por Rosemeire Guidon

Em 1º de maio deste ano, a tributação federal do etanol hidratado passou a ser monofásica, concentrando a cobrança do PIS e da Cofins na produção e importação do combustível. A medida, estabelecida pela Lei Complementar nº 214/2024 e também prevista na Reforma Tributária, unificou as alíquotas para o etanol anidro e hidratado em R$ 0,1920 por litro. O objetivo foi simplificar o sistema tributário e combater práticas fraudulentas no setor de combustíveis.

“Ao concentrar a tributação em um único ponto da cadeia, o modelo reduz significativamente as brechas para sonegação e inadimplência, como aquelas praticadas por empresas fictícias conhecidas como ‘barrigas de aluguel’”, disse Emerson Kapaz, presidente do Instituto Combustível Legal (ICL). Em sua avaliação, a medida fortalece a previsibilidade tributária, simplifica o sistema e contribui para um ambiente de negócios mais ético e isonômico.

No entanto, segundo Kapaz, essa alteração não é suficiente para combater as irregularidades tributárias do mercado. “É necessário estender o modelo aos tributos estaduais, especialmente o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)”, afirmou. Isso porque a diversidade de alíquotas do imposto entre os estados, que segue sendo tributado pelo modelo do Preço Médio Ponderado para o Consumidor Final (PMPF) definido por cada unidade federativa, dificulta a fiscalização e estimula a concorrência desleal.

As perdas são estimadas em R$ 14 bilhões anuais, o que prejudica não apenas o setor, mas também o próprio consumidor. Em abril de 2025, por exemplo, o ICMS sobre o etanol era de 13,3% em São Paulo e 32% no Rio de Janeiro. Essa diferença de carga tributária cria margens artificiais para empresas irregulares operarem com preços inferiores aos praticados por aqueles que seguem a legislação fiscal.

“A diversidade de alíquotas de ICMS entre os estados segue sendo um dos principais estímulos à guerra fiscal e à prática de fraudes estruturadas no setor”, disse o presidente do ICL, reforçando ser urgente ampliar o uso do regime monofásico com alíquota uniforme e mecanismos como o princípio da solidariedade tributária, que já têm apresentado resultados positivos em alguns estados.

Mudança nos tributos federais não é suficiente

Na visão da Fecombustíveis, a mudança para o sistema monofásico e ad rem é importante para todo o setor. “Há décadas, a Federação defende a monofasia tributária do ICMS para todos os combustíveis. Conseguimos celebrar uma parte dessa vitória com a Lei Complementar 192/2022, que aprovou a incidência uma única vez do imposto estadual sobre gasolina, etanol anidro, óleo diesel, biodiesel, GLP e derivados de gás natural, em todo o país, no início da cadeia. O imposto é cobrado uma única vez, em reais por litro, no primeiro elo de produção, de forma uniforme em todo o país. Essa mudança trouxe grande alívio ao setor, que enfrentava um cenário de concorrência desleal devido às alíquotas diferenciadas entre os estados”, disse James Thorp Neto, presidente da entidade.

“Agora, nossa luta se concentra na inclusão do etanol hidratado neste modelo. Todos no setor sabem que o etanol é alvo frequente de irregularidades e descaminho, devido às diferenças de alíquotas tributárias entre os estados”, completou. De toda forma, existe um consenso de que o primeiro passo para solucionar os problemas do setor de etanol foi dado, com a alteração na forma de cobrança dos tributos federais. Além do sistema monofásico, a carga tributária também foi reduzida, diminuindo a atratividade de eventuais fraudes.

“Passado quase um mês após a mudança para a monofasia, começamos a perceber mudanças em alguns mercados. Goiás e em Minas Gerais, por exemplo, pudemos constatar que algumas distribuidoras regulares aumentaram, mesmo que discretamente, seu volume de vendas de etanol, o que demonstra que o mercado irregular ‘encolheu’”, disse Martinho Seiti Ono, CEO da SCA, consultoria especializada no segmento.

No entanto, em sua avaliação, o maior problema decorrente de agentes irregulares acontece no estado de São Paulo. “Não percebemos mudança no mercado paulista, e inclusive algumas empresas que atuam regionalmente informaram que, a despeito das mudanças, vão permanecer ‘agressivas’”, disse.

Ono destacou que, além de fraudes já conhecidas (como o “passeio de nota fiscal”, vendas interestaduais fictícias e outras), no caso do ICMS, ainda existem irregularidades relacionadas à substituição tributária. “Dependendo do preço de pauta, isso pode representar de R$ 0,07 a R$ 0,09 por litro, em média, trazendo desequilíbrio ao mercado. Não sei se a monofasia dos tributos federais será suficiente para trazer a regularidade do mercado, por isso a revisão do ICMS é essencial”, reforçou.

 Vale explicar que, desde meados de 2023, a monofasia dos tributos foi implementada para gasolina, diesel, etanol anidro e biodiesel, mas a mudança para o etanol hidratado está demorando mais a acontecer, por envolver um número maior de agentes, especialmente devido à complexidade das cadeias de produção e distribuição, além da resistência dos governos estaduais — são 27 unidades federativas, com cargas tributárias e benefícios distintos, o que faz com que essa equação seja considerada bastante complexa.

Unificação de alíquotas também visa redução de fraudes

A diferença entre o etanol hidratado e o anidro é sua destinação. Enquanto o anidro é obrigatoriamente misturado à gasolina A, para formar a gasolina C, o hidratado é comercializado diretamente nas bombas para o consumidor. Além desses dois produtos, existe ainda o etanol para outros fins, como a fabricação de produtos farmacêuticos, cosméticos e bebidas. Esse tratamento diferenciado entre os produtos vinha sendo explorado para práticas irregulares, como o redirecionamento indevido de volumes para aproveitar vantagens tributárias.

Embora o hidratado seja o maior alvo de fraudes tributárias, o etanol anidro também foi envolvido em ações de fiscalização — e, mais recentemente, tem sido utilizado em esquemas envolvendo o chamado “etanol molhado”, ou seja, com adição irregular de água. Segundo o ICL, fraudes como a emissão de notas fiscais frias e a tredestinação (alteração do destino de um bem desapropriado pelo Poder Público) impactam diretamente a arrecadação e a concorrência.

As empresas chamadas de “barrigas de aluguel”, por exemplo, são usadas para emitir documentos fiscais fraudulentos. “Essas práticas afetam a competitividade dos postos que operam legalmente, além de gerar desequilíbrios no mercado de revenda de combustíveis”, reforçou Kapaz.

O ICL cita diversos casos investigados por órgãos estaduais em que empresas simulavam operações interestaduais para pagar menos ICMS ou deixar de recolher o imposto. Um exemplo foi a atividade de uma distribuidora registrada em Goiás, que faturava etanol para o Mato Grosso do Sul, mas entregava o produto em São Paulo. Essa prática reduzia artificialmente o custo do combustível, prejudicando quem paga os tributos corretamente, e também desequilibrando a concorrência.

A definição de um valor único de cobrança, segundo Ono, veio de um cálculo que considerou o valor do metro cúbico do hidratado (que até então era de R$ 130,90/m³ pagos pelo produtor e R$ 110,90/m³ pagos pela distribuidora) e do anidro R$ 130,90/m³ pagos pelo produtor e R$ 0,13/m³ pagos pela distribuidora).

Houve uma equalização, considerando todo o volume atualmente comercializado do hidratado e do anidro, que resultou no valor médio de R$ 192/m³, de forma que o Governo não perdesse a arrecadação. “Em termos de competitividade, isso é bom para o hidratado. No caso do anidro, como se trata de um percentual adicionado à gasolina, o impacto é mínimo. Mas essa mudança evita usos irregulares de um se passando por outro”, explicou.

Do ponto de vista de preços finais, um dos possíveis reflexos dessa mudança seria a redução do preço do hidratado. No caso do anidro, que atualmente representa 27% da composição da gasolina C, o impacto foi pequeno. Apesar desta perspectiva, divulgada pelo executivo no início de maio, logo nos primeiros dias após a mudança na tributação, revendedores de diversas localidades informaram que houve aumento de preços praticados por seus fornecedores.

“Na verdade, as empresas têm grandes estoques e fizeram compras antes do início do novo regime de monofasia. Então, esta avaliação sobre os preços só poderá ser feita quando esses estoques se exaurirem”, disse Ono. Caso as distribuidoras possam ter absorvido parte dessa redução dos tributos federais como margem, na visão do executivo da SCA, boa parte dos benefícios ao mercado serão “neutralizados”. “Ainda não temos os dados da ANP, compilados em maio. Essa avaliação só poderá ser feita de forma precisa depois disso”, afirmou ele (em entrevista realizada em 28 de maio).

Devedor contumaz

Embora seja um instrumento muito importante, a monofasia sozinha não é suficiente para controlar as irregularidades do setor. “As barrigas de aluguel se aproveitam de brechas legais e das dificuldades na fiscalização para operar, muitas vezes reabrindo sob novos CNPJs logo após acumularem dívidas impagáveis”, pontuou Kapaz. Assim, em sua visão, é essencial avançar com projetos complementares — como o devedor contumaz e o princípio da solidariedade tributária — além de intensificar a atuação integrada entre os órgãos de controle e fiscalização.

Para o ICL, dentre os projetos sobre o devedor contumaz em tramitação, o PLP 164/2022 merece atenção prioritária. “Ele define como devedor contumaz quem deixa de pagar tributos por quatro períodos consecutivos ou seis alternados dentro de um ano, desde que o débito supere R$ 15 milhões ou represente mais de 30% do faturamento anual da empresa”, explicou. A proposta, segundo ele, prevê o estabelecimento de regimes especiais de fiscalização e tributação, com o objetivo de impedir a geração de novos débitos, além de sanções como cancelamento de benefícios fiscais, restrições a contratos com o poder público e até liquidação extrajudicial.

Outro projeto relevante é o PLP 125, que propõe a criação de um Código de Defesa do Contribuinte. A versão atual, relatada pelo senador Efraim Filho, caracteriza o devedor contumaz com base em dívida reiterada, substancial e injustificada. Em resumo: é quem deve muito, há muito tempo, sem justificativa plausível. Ambos os projetos estão previstos para votação ainda em 2025.

Mais previsibilidade tributária

Embora a mudança no preço final não tenha sido significativa, Ana Mandelli, diretora de downstream do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), destacou que a monofasia contribui para dar mais previsibilidade tributária e menos brechas para irregularidades.

“A mudança é benéfica para todas as empresas que atuam de forma leal na cadeia de distribuição, pois fundamentalmente vai mitigar a capacidade de sonegação de impostos, promovendo condições concorrenciais mais justas”, ressaltou. Ela acrescentou que a medida permite que empresas que operam de maneira séria e regular passem a competir em igualdade de condições — ou seja, a monofasia “encurta” possíveis oportunidades para agentes irregulares.

O ICL lembrou, ainda, que o combate às fraudes no setor de combustíveis exige um esforço permanente e multifacetado. Além da monofasia e da tipificação do devedor contumaz, o setor defende a modernização das ferramentas de fiscalização, o uso de inteligência de mercado e a atuação coordenada com órgãos como ANP, Receita Federal, Procons, Ministérios Públicos, secretarias estaduais e municipais — além de punições adequadas aos ilícitos do setor para o estabelecimento.

Fonte: Revista Combustíveis & Conveniência (edição nº 229 de maio de 2025)