Harmonia e convergência de interesses

Heloisa Lee Burnquist

Por Heloisa Lee Burnquist*

O Brasil, líder global na produção de cana-de-açúcar, depende de um sistema de pagamento que funcione bem para a sua indústria sucroenergética. Este sistema é importante por estabelecer como as receitas das vendas de açúcar e etanol são distribuídas entre produtores e usineiros, impactando tanto a lucratividade quanto a saúde geral do setor como um todo.

Na maioria das indústrias açucareiras os produtores de cana e as usinas são negócios economicamente independentes, porém com processo produtivo fortemente interdependentes. Os produtores, responsáveis pelo cultivo da cana, fornecem a matéria-prima vital para os usineiros, que a transformam em açúcar, etanol e outros produtos.

Essa interdependência cria um vínculo onde o sucesso de um depende do sucesso do outro. Dessa maneira, um dos grandes desafios que setor sucroalcooleiro é a definição do sistema de pagamento que mantenha um equilíbrio entre os interesses dos produtores e dos usineiros.

Pagamento de cana no mundo

Na prática, existem quase tantos sistemas de pagamento de cana quanto países produtores. O número e os diferentes tipos de sistemas de pagamento de cana existentes são uma indicação de que não existe uma fórmula única para um pagamento de cana eficiente e eficaz. Geralmente, os produtores recebem um preço fixo por tonelada de cana, subsidiado pelo governo local.

Em sua grande parte, o pagamento pela cana é definido segundo características particulares a cada um dos países produtores, de forma que, de maneira geral, comparar os valores pagos pela cana são pouco conclusivos, tanto entre estados de um mesmo país como entre países.

Os sistemas utilizados para dividir as receitas entre produtores e usineiros podem ser agregados em três grandes grupos: Sistemas de preços fixos da cana; Sistema de pagamento baseado na sacarose (PCTS%); e Sistema de pagamento baseado no açúcar recuperável (AR), sendo que esse último tem sido considerado o mais avançado em função do desempenho do sucroenergético onde é aplicado.

A tabela apresenta exemplos dos países que adotam esses dois últimos sistemas. Em diversos países, como nos Estados Unidos e Índia, o governo intervém fortemente no pagamento da cana, estabelecendo sistemas de preço mínimo (que de mínimo não têm nada, pois são bem altos) e subsídios, que dificultam o fortalecimento e competitividade do setor, como já vivenciamos no Brasil em décadas anteriores no país.


A tabela mostra que em todos os países os produtores são remunerados apenas pelo açúcar e etanol que a indústria produz e comercializa. Hoje, as indústrias mais modernas do Brasil produzem outros produtos que são comercializados gerando receita.

A definição da partilha obtida com a receita desses outros produtos é uma negociação comercial e política, pois o custo que a indústria incorre para gerar esses outros produtos certamente é diferente daquele em que incorre para produzir apenas açúcar e etanol.

Imaginemos um sistema de pagamento para a cana-de-açúcar que beneficie todos os envolvidos, desde os produtores aos usineiros de forma equilibrada. Mais especificamente, seria um sistema que recompense o trabalho árduo, incentive a eficiência e promova a sustentabilidade da indústria e que seja baseado nas seguintes diretrizes:

Lucratividade Compartilhada: uma maré alta que levanta todos os barcos. O sistema deve incentivar a eficiência em toda a cadeia, aumentando a lucratividade para todos. Produtores e usineiros trabalharão juntos para reduzir custos e otimizar a produção, dividindo os frutos do sucesso. Cada um será reconhecido por sua contribuição individual.

Compartilhando os Riscos: navegando juntos pelas incertezas do mercado. O preço do açúcar e do etanol oscila, mas um sistema ideal distribui os riscos de forma justa. Através de uma fórmula pré-acordada, ambas as partes navegarão pelas flutuações do mercado com mais segurança.

Simplicidade e Transparência: confiança através da clareza. O sistema deve ser claro e fácil de entender para todos os envolvidos. Transparência nos cálculos e mecanismos de preços geram confiança e facilitam a comunicação, criando um ambiente de colaboração.

Justiça e Equidade: um campo de jogo nivelado para todos. Os produtores individuais serão recompensados por seus próprios méritos, não penalizados pelo desempenho de outros. Essa justiça garante um ambiente competitivo saudável, onde cada um tem a chance de prosperar.

Investir no futuro: para garantir a viabilidade e sustentabilidade do sistema, os investimentos de ambas as partes devem ser considerados. Planilhas de custos consolidadas fornecerão uma visão transparente dos investimentos realizados, permitindo que decisões estratégicas sejam tomadas de forma conjunta, como no caso dos investimentos na produção de energia.

Conclusões

Acreditamos que, com o engajamento de todos os envolvidos, o setor sucroalcooleiro brasileiro superará os desafios atuais e se consolidará como um dos pilares da economia nacional. O enfoque na revisão do sistema de pagamento de cana é oportuno, pois vem sendo sujeito a desequilíbrios em função da evolução da indústria.

É necessário um avanço urgente em negociações para a revisão de uma sistemática que equalize as pretensões e traga maior equilíbrio às relações de mercado. Uma referência coordenada é importante para criar bases sólidas às negociações travadas entre as partes, sendo de suma importância que qualquer mudança realizada seja realizada de forma gradual e sistemática com transparência e governança valorizando todo avanço conquistado na história do setor.

Acredita-se que na ausência de uma referência será necessário “consertar o pneu com a bicicleta em movimento” Isso aumentaria a probabilidade de queda do condutor provocando outros problemas. Mudanças são necessárias, mas têm maior chance de serem bem-sucedidas se conduzidas de forma racional e bem planejada.

*Heloisa Lee Burnquist é professora da Esalq/USP e pesquisadora do Cepea.

Fonte: Globo Rural