Esforços do setor de aviação por combustível “verde” esbarram em atrasos

Caminhão tanque para abastecimento de aeronave com 80% de SAF
(Foto: Divulgação Airbus)

Em 2019, Scott Kirby, presidente-executivo da United Airlines (NASDAQ:UAL), saudou o novo contrato da companhia aérea norte-americana com a World Energy, produtora de combustível “verde” para aviões, como um exemplo a ser seguido pelo setor aéreo para reduzir as emissões de poluentes emitidos pelos motores das aeronaves. Seis anos depois, essa colaboração está morta.

A World Energy, sediada em Boston, foi uma das primeiras empresas do mundo a produzir quantidades comerciais de combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês), um tipo de combustível produzido a partir de fontes como óleo de cozinha usado e resíduos agrícolas.

A refinaria da World Energy em Paramount, próxima ao centro da cidade norte-americana de Los Angeles, foi uma rara história de sucesso, fornecendo milhões de litros de SAF por ano para companhias aéreas como a United Airlines e a também norte-americana JetBlue (NASDAQ:JBLU) Airways. A instalação, que começou a operar em 2016, foi fundamental para as promessas das companhias aéreas para usarem uma mistura de 10% de SAF até o final desta década.

Mas a refinaria deixou de operar em abril. E os planos da World Energy para uma segunda instalação em Houston, no Estado norte-americano do Texas, foram paralisados devido à falta de comprometimento do setor, de acordo com o presidente-executivo da empresa, Gene Gebolys.

“Algumas companhias aéreas se envolveram em um esforço bastante dissimulado para publicar comunicados à imprensa” exagerando seu compromisso com os projetos SAF, disse Gebolys, sem citar nomes de empresas. “Às vezes, as pessoas falavam demais e faziam muito pouco.”

Ainda assim, Gebolys reconheceu que algumas empresas aéreas fizeram um esforço genuíno para apoiar os produtores de SAF, enquanto os governos também precisavam dar um passo à frente com incentivos mais fortes para impulsionar o progresso.

A United Airlines disse que encerrou seu relacionamento com a World Energy “há alguns anos”, sem fornecer um motivo. Um porta-voz da JetBlue disse que a World Energy tem sido um “parceiro valioso” desde 2020 e que continuará trabalhando com a empresa.

As dificuldades da World Energy refletem a situação de dezenas de empresas produtoras de combustíveis “limpos”, de acordo com uma análise do setor feita pela Reuters. Quase 20 anos depois que o primeiro voo comercial abastecido parcialmente com biocombustíveis fez o curto trajeto de Londres a Amsterdã, a Reuters descobriu que os planos do setor aéreo de se tornar “verde” antes que os reguladores comecem a penalizá-los são pouco mais do que um sonho impossível.

NENHUM CAMINHO CLARO

A Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês), um órgão global que representa 340 companhias aéreas, prevê que o SAF será responsável por 0,7% do total de combustível de aviação este ano, em comparação com 0,3% em 2024. O tráfego de passageiros, por sua vez, deve aumentar 6% este ano, segundo a entidade.

A Iata estabeleceu uma meta de emissões líquidas zero até 2050, um objetivo que exige que as companhias aéreas aumentem o uso de SAF para 118 bilhões de galões (446,8 bilhões de litros) por ano, um aumento de mais de 300 vezes em relação à produção atual.

Os líderes do setor de aviação apontam para uma onda de novas iniciativas de SAF que, segundo eles, provocará um boom semelhante ao rápido crescimento dos veículos elétricos e da energia solar.

No entanto, o setor de aviação ainda não publicou um roteiro abrangente ou um banco de dados transparente dos próximos projetos de SAF, o que permitiria que os reguladores e o público avaliassem a credibilidade dessas projeções.

Para examinar as alegações do setor, a Reuters criou seu próprio banco de dados de iniciativas SAF das companhias aéreas, oferecendo a visão mais abrangente até o momento sobre o progresso vacilante do setor e revelando que o setor não tem um caminho claro para atingir a meta de zero emissões líquidas.

Embora as companhias aéreas tenham anunciado 165 projetos SAF nos últimos 12 anos, apenas 36 foram concretizados, segundo a Reuters. Entre eles, a Reuters descobriu problemas em três dos maiores – incluindo a World Energy – que exemplificam os desafios sistêmicos que assolam o setor de SAF.

Dos projetos restantes, 23 foram abandonados, 27 estão atrasados ou em espera indefinida, 31 ainda não produziram nenhum combustível e 4 são acordos de crédito SAF, nos quais nenhum combustível físico é entregue.

Para os outros 44 projetos, a Reuters não conseguiu encontrar nenhuma atualização pública desde seus anúncios iniciais.

Se todos os projetos pendentes anunciados pelas companhias aéreas atingissem seu potencial máximo, seriam adicionados apenas 12 bilhões de galões de produção de SAF, segundo a análise da Reuters. Isso representa cerca de 10% do que é necessário para atingir a meta.

As companhias aéreas atribuem os problemas ao setor de petróleo, dizendo que ele não está produzindo combustível suficiente.

“Esses caras são a causa do problema e precisam começar a fazer sua parte”, disse Willie Walsh, diretor da Iata, e ex-diretor executivo da British Airways e de sua controladora, a International Airlines Group (LON:ICAG).

No momento, o SAF custa de três a cinco vezes mais do que o combustível de aviação e alguns executivos de petrolíferas argumentam que a demanda das companhias aéreas é limitada pelos preços atuais.

“Eu gostaria que houvesse uma escassez. Na verdade, vejo um excesso de capacidade”, disse Bernard Pinatel, diretor de distribuição, marketing e serviços da petrolífera TotalEnergies, a jornalistas em junho.

REINICIANDO A PARAMOUNT

A refinaria Paramount, que usava óleo de cozinha e gordura animal de um matadouro local para produzir combustível, tropeçou repetidamente em seus esforços de expansão e todos os 35 funcionários foram demitidos em abril, disseram duas fontes com conhecimento direto do assunto.

O futuro da instalação é incerto, disseram as fontes, depois que a parceira da World Energy, a Air Products, se retirou do projeto em fevereiro, citando condições comerciais desafiadoras ligadas à expansão e às operações. A Air Products, uma empresa norte-americana de gases industriais e produtos químicos, estava programada para liderar uma expansão de US$2 bilhões no local.

O presidente-executivo da World Energy, Gebolys, disse que o fechamento da Paramount foi um “reset” porque a reforma estava acima do orçamento e atrasada. Ele disse que a unidade voltará a funcionar, sem dar um prazo. O executivo se recusou a comentar sobre as demissões.

De acordo com mais de uma dúzia de pessoas diretamente envolvidas no setor, as companhias aéreas desempenham papéis mínimos na execução de projetos e, na maioria dos casos, seu único compromisso é comprar SAF quando seus parceiros o produzem.

Além disso, as companhias aéreas estão fazendo projeções ousadas sobre o uso de SAF e as reduções de emissões com base em tecnologias não comprovadas ou em projetos em estágio inicial executados por startups sem experiência em produção comercial, constatou a Reuters.

Dos 36 projetos que produziram algum SAF, todos, com exceção de um, dependem do processo químico de ésteres e ácidos graxos hidroprocessados (HEFA) para converter óleos, gorduras e graxas residuais em combustível de aviação. A HEFA foi a tecnologia usada na Paramount.

No entanto, as usinas de HEFA são severamente limitadas pela disponibilidade limitada de matérias-primas adequadas e não podem atender às demandas de combustível de longo prazo do setor, segundo três especialistas do setor.

A economista-chefe e executiva de sustentabilidade da Iata, Marie Owens Thomsen, contestou a ideia de que as companhias aéreas desempenham apenas um papel mínimo, dizendo que elas estão fechando acordos de compra de SAF e investindo em novas tecnologias, apoiando inovações em estágio inicial e colaborando com instituições de pesquisa.

Thomsen também disse que formas alternativas de produzir SAF precisavam ser desenvolvidas juntamente com o HEFA, pois esse processo sozinho não é suficiente para produzir combustível suficiente para a meta de emissões líquidas zero até 2050.

“EXERCÍCIO DE FUTILIDADE”

A aviação é responsável por 2,5% das emissões globais de gases que aquecem o planeta, como o dióxido de carbono. Esse número deve aumentar diante de previsões de que o tráfego aéreo vai mais do que dobrar em relação aos níveis de 2019 até 2050 e o uso de combustível aumente 59%, de acordo com o grupo de defesa ambiental Transport & Environment (T&E).

Ao apresentar uma imagem de avanços iminentes e sucesso na produção de SAF em escala, as companhias aéreas podem reforçar suas credenciais ecológicas e, ao mesmo tempo, desviar a pressão para intervenções mais intensas, como limites mais rígidos de emissões ou impostos mais altos sobre emissões de carbono, disse o grupo.

“Trata-se, antes de mais nada, de justificar o crescimento sem fim e fingir que é possível fazer isso sem aquecer o planeta cada vez mais – o que não é possível”, disse Almuth Ernsting, ativista do grupo de defesa Biofuelwatch.

Não encontrar uma solução pode custar caro. De acordo com as novas regras da UE, as companhias aéreas enfrentam mandatos crescentes para usar SAF em voos que partem de aeroportos da UE. O mandato começa com pelo menos 2% do combustível em 2025, subindo para 6% em 2030 e, por fim, atingindo 70% em 2050.

As obrigações europeias de uso de SAF devem custar às companhias aéreas US$2,9 bilhões em compras adicionais de combustível e despesas de conformidade este ano, de acordo com estimativas da Iata.

O retorno ao poder do presidente dos EUA, Donald Trump, pode prejudicar ainda mais a transição do setor para uso de combustível menos poluente. Trump se comprometeu a reverter muitos incentivos que seu antecessor, Joe Biden, ofereceu à SAF e a outros projetos de energia “verde”.

Enquanto os projetos fracassam nos EUA, o setor aéreo norte-americano deposita esperanças em uma nova bonança de SAF no Panamá. Mas a Reuters constatou que o projeto já está emperrando.

A SGP BioEnergy, com sede em Nova York, comprometeu-se em 2022 a construir a maior instalação de SAF do mundo, em colaboração com o governo do Panamá. A usina deve produzir combustível menos poluente a partir de óleo de cânhamo industrial e óleo de cozinha usado.

Prevista para começar este ano, a produção foi adiada para 2027. O presidente-executivo da SGP BioEnergy, Randy Letang, disse que o atraso se deveu em grande parte ao fato de as companhias aéreas demonstrarem menos interesse em apoiar projetos de SAF do que no passado.

O secretário de energia do Panamá não respondeu a um pedido de comentário.

Depois que a refinaria for inaugurada, a empresa poderá passar a produzir diesel renovável para caminhões e navios, porque esses setores demonstraram mais entusiasmo do que a aviação, disse Letang.

“Só iremos até certo ponto com a SAF até determinarmos se as companhias aéreas estão realmente empenhadas em assumir os compromissos com esse combustível”, disse ele.

Letang disse que as companhias aéreas estavam competindo para anunciar seus próprios projetos de destaque, quando na verdade os produtores precisavam de consórcios formados por muitas companhias aéreas para investirem em projetos de grande escala.

“É assim que se constrói esse setor. Sem isso, é um exercício de futilidade, francamente”, disse ele. “As companhias aéreas poderiam fazer muito mais.”

Há alguns anos, Letang estava assinando grandes acordos envolvendo SAF com as principais companhias aéreas por meio de seu empreendimento anterior de biocombustíveis, a SG Preston. Em 2016, a JetBlue anunciou um compromisso de 10 anos para comprar volumes comerciais de combustível menos poluente da SG Preston, chamando-o de um dos maiores negócios desse tipo na história. Em 2021, a JetBlue disse que dobraria o acordo, pois buscava a meta de usar SAF em 8% de suas necessidades de combustível até 2023.

A Qantas Airways, da Austrália, assinou um contrato semelhante de 10 anos com a SG Preston em 2017 envolvendo 8 milhões de galões de SAF anualmente a partir de 2020 para ajudar a abastecer os voos entre Los Angeles e o país da Oceania.

Os acordos foram baseados no plano da SG Preston de construir cinco refinarias na América do Norte, mas nenhuma foi construída.

A SG Preston entrou com pedido de recuperação judicial em 2022, de acordo com os registros da empresa. Um porta-voz da atual empresa de Letang, a SGP BioEnergy, disse que as duas companhias não têm nenhuma afiliação.

NOVA TECNOLOGIA

Embora a maioria dos projetos SAF dependa do HEFA, a startup britânica Velocys usa a tecnologia Fischer-Tropsch, que converte resíduos como lixo, lascas de madeira ou gás queimado em combustível menos poluente.

A IAG – controladora da British Airways, Iberia, Vueling e Aer Lingus – tem sido uma apoiadora entusiasmada, anunciando quatro grandes iniciativas de SAF com a Velocys nos últimos 15 anos. Mas, apesar de produzir SAF em projetos-piloto, nenhum dos projetos da Velocys alcançou a produção comercial.

Os problemas começaram em 2010 com um projeto para transformar o metano de um aterro sanitário de Londres em combustível de aviação. Esse empreendimento fracassou quando seu principal financiador foi à falência.

Desde então, a Velocys tentou construir suas próprias refinarias – inclusive no Estado norte-americano de Oklahoma -, mas isso se mostrou muito caro e tecnicamente desafiador.

Depois de fechar a instalação de Oklahoma, a Velocys mudou o foco para dois novos projetos: um em Immingham, no nordeste da Inglaterra, e outro no Mississippi, nos EUA.

A petrolífera britânica Shell (NYSE:SHEL) e a IAG inicialmente apoiaram o empreendimento inglês da Velocys, e o governo britânico concedeu um subsídio de 27 milhões de libras (US$37 milhões) em 2022, e depois mais 3 milhões de libras em julho. No entanto, a Shell desistiu em 2021 para buscar seus próprios empreendimentos SAF. A Shell não comentou.

Embora o IAG não tenha um acordo de compra com a Velocys, ele mantém uma parceria e espera que a produção comece em 2029.

O presidente-executivo da Velocys, Matthew Viergutz, continua otimista, dizendo que a empresa aprendeu com os contratempos do passado. No entanto, o projeto do Mississippi está suspenso enquanto se aguarda a clareza das regulamentações da SAF dos EUA.

O projeto de Immingham deveria ter começado a abastecer a British Airways no ano passado. O local anunciado da refinaria é ocupado por um campo empoeirado, vazio, exceto por um banheiro portátil azul caído de lado. A Velocys ainda não vendeu uma gota de combustível de aviação verde para a IAG ou qualquer outra companhia aérea.

Por Reuters

Fonte: Investing.com