Crédito de PIS/Cofins na compra de etanol hidratado: o erro do STJ

Em 18 de novembro de 2025, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concluiu o julgamento do Recurso Especial 1.965.163/PE, ocasião em que se analisou o direito ao creditamento de PIS e Cofins sobre as aquisições de etanol hidratado realizadas por distribuidores.

Por unanimidade, o tribunal entendeu que a legislação vedaria tal benefício, com fundamento no artigo 3º, I, “b”, das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003 [1], dispositivo que, segundo o acórdão, impediria o desconto de créditos relativos à aquisição de bens sujeitos ao regime de incidência monofásica [2]. Embora esse raciocínio pareça adequado a uma leitura isolada do dispositivo, ele não se sustenta quando confrontado com a trajetória legislativa do setor de combustíveis, tampouco com a interpretação sistemática das normas de PIS e Cofins.

Logo após o julgamento, o professor Heleno Taveira Torres analisou, em artigo publicado na imprensa especializada [3], a evolução constitucional e legislativa da tributação do etanol e destacou a necessidade de interpretar a legislação infraconstitucional à luz do artigo 195, § 12, da Constituição, que institui a lógica da não cumulatividade, bem como da diretriz constitucional de privilegiamento tributário dos biocombustíveis (artigo 225, § 1º, VIII, introduzido pela EC 132) [4]. Seus argumentos, que subscrevemos integralmente, evidenciam que a decisão do STJ parte de uma leitura fragmentada do sistema, desconectada da coerência normativa que rege o setor e da orientação ambiental consagrada pela Constituição.

Para além das premissas já desenvolvidas pelo professor Heleno, há, entretanto, um ponto de natureza estrutural que precisa ser explicitado e que demonstra o equívoco de base do julgado: o artigo 3º, I, “b”, das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003 jamais se aplicou ao distribuidor de etanol hidratado e não pode ser utilizado como fundamento para vedar o seu crédito em regime bifásico.

Essa conclusão decorre tanto da origem legislativa desse dispositivo quanto de sua função sistêmica bem como de sua coordenação com o § 1º-A do artigo 2º das mesmas leis e com o § 13 do artigo 5º da Lei nº 9.718/98.

A Receita Federal, na Solução de Divergência Cosit nº 7/2014, cuja lógica acabou por permear as posições recentes da PGFN e influenciou a decisão do STJ, adotou a premissa de que o direito ao crédito do distribuidor teria existido apenas entre 2008 e 2013, período em que o § 13 do artigo 5º da Lei nº 9.718/98 mencionava expressamente o distribuidor. A partir da exclusão dessa palavra pela MP nº 613/2013 (posteriormente convertida na Lei 12.859/2013), o Fisco passou a sustentar que o direito ao crédito teria sido revogado e que, doravante, o artigo 3º, I, “b”, voltaria a impedir o creditamento. Essa premissa, entretanto, não se sustenta historicamente nem sistematicamente, assim, comprometendo todo o raciocínio adotado pelo tribunal.

O histórico legislativo demonstra, com clareza, que a Lei nº 11.727/2008 é o ponto estrutural de reorganização da tributação do etanol. Essa norma alterou, simultaneamente, as Leis nº 10.637/2002 e nº 10.833/2003 — criando o § 1º-A ao artigo 2º — e a Lei nº 9.718/98 — criando o § 13 e o § 14. Esses dispositivos foram concebidos como partes complementares de um mesmo arranjo normativo: o § 1º-A do artigo 2º determinava que produtores, importadores e distribuidores de álcool estariam sujeitos às alíquotas diferenciadas do artigo 5º da Lei 9.718/98, deixando claro que esses agentes integravam a cadeia não cumulativa; o § 13 do artigo 5º da Lei 9.718/98 autorizava expressamente produtor, importador e distribuidor a se creditar na aquisição do álcool para revenda. Assim, a própria lei concebeu o distribuidor como elo da cadeia plurifásica.

Desse modo, a quem se destinava a vedação do artigo 3º, I, “b”? A resposta lógica e coerente com o sistema é simples: ao varejista. Somente o varejista de etanol hidratado operava com saídas tributadas à alíquota zero, nos termos do artigo 5º, § 1º, II, da Lei 9.718/98. A vedação do artigo 3º, I, “b”, portanto, sempre se dirigiu ao elo desonerado na cadeia e jamais ao distribuidor. Qualquer interpretação contrária geraria uma incongruência interna na própria Lei nº 11.727/2008, que criou simultaneamente o § 1º-A, dos artigos 2º das Leis 10.673/02 e 10.833/03, e o § 13 do artigo 5º da Lei 9.718/98, justamente para estruturar um regime plurifásico com crédito assegurado ao distribuidor.

Leitura descontextualizada

A MP 613/2013 e o Decreto nº 7.997/2013 alteraram temporariamente essa dinâmica ao zerar as alíquotas incidentes sobre as vendas do distribuidor, criando um período transitório de monofasia. Nesse contexto, a exclusão da palavra “distribuidor” do § 13 apenas refletiu o fato de que, durante esse período, o distribuidor não possuía mais débito das contribuições na revenda — logo, nenhuma necessidade de crédito existia.

Quando, contudo, o regime deixou de ser monofásico e voltou a ser bifásico, em 2017, com a reoneração promovida pelos Decretos 9.101/2017 e 9.112/2017, o direito ao crédito voltou a emergir, pois a estrutura normativa que o sustentava — especialmente o artigo 3º, I, “b”, lido em conjunto com o § 1º-A do artigo 2º — jamais havia sido suprimida em relação ao distribuidor. A interpretação fiscal (e adotada pelo tribunal) desconsidera esse retorno ao regime bifásico e projeta equivocadamente a lógica monofásica transitória para um período posterior em que ela não mais subsiste.

A coerência desse entendimento fica ainda mais evidente quando se aplica a lógica do próprio Tema 1093/STJ, no qual o tribunal fixou que a vedação ao crédito na cadeia monofásica recai apenas sobre os elos cujas saídas são desoneradas e vinculadas ao produto tributado de forma concentrada. Aplicando esse raciocínio à cadeia do etanol hidratado, o único elo que se enquadra nessa situação é o varejista, sujeito à alíquota zero. O distribuidor, que possui débito na revenda em regime bifásico, não poderia ser alcançado por tal vedação. Aplicar o Tema 1.093 para vedar o crédito do distribuidor, portanto, inverte o próprio conteúdo normativo do precedente.

Diante de todo esse quadro, é possível afirmar que o equívoco do julgamento do REsp 1.965.163/PE decorre de uma leitura descontextualizada do artigo 3º, I, “b”, de uma incompreensão sobre o vínculo lógico entre o § 1º-A, do artigo 2º das Leis 10.637/02 e 10.833/03, e o § 13 do artigo 5º da Lei nº 9.718/98, da desconsideração do caráter transitório da monofasia instituída em 2013, da violação do entendimento do Tema 1093 e da incompatibilidade com a diretriz constitucional de privilegiamento tributário aos biocombustíveis. A legislação sempre distinguiu com precisão o distribuidor — elo intermediário de uma cadeia bifásica — do varejista — elo desonerado e destinatário natural da vedação prevista no artigo 3º, I, “b”, das Leis 10.637/02 e 10.833/03.

Por essa razão, espera-se que o STJ reveja o posicionamento adotado no julgamento em eventual recurso integrativo, pois a decisão, além de contrariar o texto constitucional que assegura proteção tributária aos biocombustíveis e ao meio ambiente sustentável, representa uma interpretação errônea da legislação infraconstitucional e da própria jurisprudência da corte, especialmente do Tema 1.093.

[1] Art. 3o Do valor apurado na forma do art. 2o a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a:

I – bens adquiridos para revenda, exceto em relação às mercadorias e aos produtos referidos:

b) nos §§ 1o e 1o-A do art. 2o desta Lei;

[2] Tese definida pelo STJ: “1. É vedada a constituição de créditos da Contribuição para o PIS/PASEP e da Cofins sobre os componentes do custo de aquisição (art. 13, do Decreto-Lei n. 1.598/77) de bens sujeitos à tributação monofásica (arts. 3º, I, “b” da Lei n. 10.637/2002 e da Lei n. 10.833/2003).”

[3] TORRES, Heleno Taveira. Tributação de etanol e coerência com a proteção ambiental na jurisprudência do STJ. Consultor Jurídico, 17 nov. 2025. Disponível aqui.

[4] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(…)
VIII – manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis e para o hidrogênio de baixa emissão de carbono, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes, especialmente em relação às contribuições de que tratam o art. 195, I, “b”, IV e V, e o art. 239 e aos impostos a que se referem os arts. 155, II, e 156-A.

Fonte: Conjur