Por Vinicius Neder
Vinte anos após a introdução dos carros flex, em 2003, a transição para uma economia de baixo carbono oferece mais uma oportunidade para a cana-de-açúcar e a indústria sucroenergética no Brasil.
A chegada dos veículos elétricos intensifica investimentos em carros híbridos, inclusive com uso do etanol, uma vantagem energética do país. Essa nova perspectiva e avanços tecnológicos no campo formam um cenário que pode dobrar a produção de cana e triplicar a de etanol, dizem executivos e pesquisadores do setor.
Com as metas de redução de gases de efeito estufa (GEEs) gerados pelos combustíveis de origem fóssil, a indústria automobilística parece se dividir entre a aposta da China nos elétricos e o caminho dos híbridos, que combinam motores elétricos e a combustão, como o flex brasileiro.
Essa segunda vertente é o centro dos planos bilionários anunciados recentemente por Toyota e Stellantis (dona de Fiat e Peugeot), por exemplo, entre os R$ 117 bilhões que montadoras investirão no país até 2030.
Parte da indústria acredita que os híbridos são o modelo ideal de transição, particularmente em países emergentes, onde o preço alto dos carros elétricos e a falta de infraestrutura de recarga são barreiras. Se, por um lado, o veículo híbrido reduz o consumo de etanol por motorista, a adoção desse caminho por outros países pode elevar a demanda global por um combustível do qual o Brasil é exportador.
E há outros motivos para o otimismo: países discutem elevar a diluição de biocombustíveis na gasolina para reduzir emissões e várias rotas tecnológicas tentam viabilizar o SAF, o combustível sustentável de aviação que poderá substituir o atual querosene, de origem fóssil.
Os brasileiros estão otimistas sobre a possibilidade de o álcool despontar como o insumo mais vantajoso. O etanol ainda pode ser usado na produção de hidrogênio.
“Imagina os EUA colocando 5% a mais de etanol na gasolina. Hoje são 10%. Imagina, no Brasil, subindo para 30%. Imagina outros países adotando essa mistura. O Brasil tem grande potencial”, empolga-se o presidente da São Martinho, Fabio Venturelli.
Sustentabilidade no ar
A Raízen, maior do ramo no país, pretende construir, até 2027, oito usinas de etanol de segunda geração, fabricado a partir de celulose encontrada em palha de cana ou outras plantas. O investimento soma quase R$ 10 bilhões, já que cada unidade custa em torno de R$ 1,2 bilhão.
Até 2030, serão 20 usinas. No fim de fevereiro, anunciou a captação de US$ 1,5 bilhão (R$ 7,5 bilhões), em “títulos verdes” de longo prazo, para financiar parte desses aportes.
“Nas regulações europeia, japonesa e americana, o etanol de segunda geração se encaixa. Uma empresa de energia europeia, por exemplo, tem um limite de emissões (de GEEs). Ou ela reduz ou compra um produto que tenha créditos. O etanol de 2ª geração é como se fosse um crédito de carbono” define o diretor de transição energética e investimentos da Raízen, Mateus Lopes.
Na aviação comercial, não há saída fora dos biocombustíveis, observa o presidente da GranBio, Bernardo Gradin, pioneira brasileira no etanol de segunda geração. Segundo a Iata, a entidade global que reúne as companhias aéreas, 65% da redução de emissões do setor até 2050 terão de vir do SAF.
Em 2023, 300 milhões de litros foram produzidos. A perspectiva é de 5 bilhões de litros anuais em 2025. A GranBio investe em uma usina experimental nos EUA em parceria com a Honeywell, fornecedora do setor de aviação. “A demanda de SAF é real”, diz Gradin.
A Atvos já planeja a construção de uma refinaria de SAF no Brasil, para ir além do açúcar e do etanol e agregar valor. O estudo de viabilidade econômica ainda pode consumir de três a cinco anos, mas o presidente da empresa, Bruno Serapião, diz estar confiante.
“Fica o alerta: o Brasil é o maior exportador de soja do mundo, mas perdeu o bonde de ser o maior exportador de farelo e óleo de soja, porque não montou uma política industrial para favorecer a instalação dessas indústrias aqui”, afirma.
Na fronteira tecnológica, a startup Hytron, nascida na USP, trabalha com a Raízen e a petroleira Shell em um projeto para desenvolver hidrogênio verde a partir do etanol. Seria uma forma de driblar dois dos principais obstáculos à produção de hidrogênio verde: a alta demanda por eletricidade de fonte renovável e o transporte do gás, que requer condensação em baixíssima temperatura em navios para exportação.
O projeto, que constrói unidades experimentais, consiste em extrair hidrogênio do etanol, mais fácil de transportar, em usinas, chamadas de “reformadores”, instaladas próximas dos consumidores. “Em vez de desenvolver uma cadeia logística nova, podemos aproveitar a que já existe” diz o gerente de tecnologia de baixo carbono da Shell no Brasil, Alexandre Breda.
Na frente agrícola, a tecnologia possibilitará produzir mais com menos cana. O CTC, empresa de pesquisa mantida pelos principais grupos sucroenergéticos, desenvolve novas variedades genéticas de cana, incluindo transgênicas, mais resistentes a pragas e mais produtivas, e sementes para facilitar o plantio, até hoje baseado em mudas.
“Nossa visão é que é possível dobrar a produtividade da cana-de-açúcar nos próximos 20 anos, o que vai mudar completamente o jogo”, diz o presidente do CTC, Cesar Barros.
Salto na produção
Isso significaria alcançar 1,2 bilhão de toneladas de cana por ano, conforme dados da União da Indústria de Cana-de-açúcar e Bioenergia (Única), com a mesma área plantada. Com mais cana e a ampliação do parque industrial (atualmente são 360 usinas), o país poderia dar um salto na produção de açúcar e etanol, para cerca de 70 bilhões de litros anuais. A do combustível poderia triplicar porque há também ganhos na frente tecnológica industrial.
Um estudo publicado em 2020 pelo Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR), do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), estima que a incorporação generalizada do etanol de segunda geração poderia ampliar a produção em mais 50%. Se esse aumento se der sobre a produção elevada pelo aumento da produtividade da cana, seriam 100 bilhões de litros ao ano, o triplo da atual.
No estágio atual, o elevado custo de produção ainda é um obstáculo para a incorporação da tecnologia de segunda geração. Para reduzi-lo, o LNBR trabalha no desenvolvimento de enzimas nacionais, insumo essencial no processo de transformar a celulose em etanol. O diretor do laboratório, Eduardo Couto, diz que, após testes, será possível o uso comercial por volta de 2030.
“Uma enzima produzida localmente na usina reduz custos com logística, reduz a pegada de carbono e faz com que o etanol de segunda geração fique mais competitivo comercialmente”, diz Couto.
O diretor de inteligência setorial da Unica, Luciano Rodrigues, inclui no rol de uma “transformação acelerada” do setor o etanol de milho e o biometano. Em dez anos, o etanol de milho saltou de zero para 17% de todo o volume no país.
O biometano – substituto do gás natural de origem fóssil, tanto para a indústria quanto para o transporte, como gás natural veicular (GNV) – é gerado a partir da vinhaça e da torta de filtro, sobras da fabricação de açúcar e etanol.
Rodrigues vê no gás potencial semelhante ao da geração de eletricidade a partir do bagaço. Hoje, essa fonte já soma 5% da matriz elétrica do país.
Clima preocupa
As oportunidades se colocam num momento de retomada após anos de dificuldades, diz o analista da XP Investimentos, Leonardo Alencar. Desde a década passada, a cana tem sido atingida pela seca e pelo calor.
Recentemente, problemas climáticos na Índia, maior competidor do Brasil no açúcar, elevaram os preços internacionais, incentivando a produção brasileira. Por aqui, canaviais foram beneficiados pelas chuvas, que podem minguar este ano com La Niña.
Segundo Alencar, na conjuntura atual, o açúcar tem sustentado o setor, enquanto o etanol está com preço relativamente baixo. Rodrigues, da Unica, considera que o vaivém dos preços é normal.
Fonte: O Globo