Carro flex resgatou Proálcool das cinzas e pavimentou atual “euforia ambiental”

Depois de quase morrer após a crise de desabastecimento de 1989 e passar mais de uma década adormecido, o Proálcool — que completou 50 anos em 14 de novembro — reviveu no início dos anos 2000.

Naquele momento, formou-se outra conjuntura, positiva.

De um lado, o preço do petróleo voltou a subir, tornando novamente um problema a dependência da gasolina. De outro, duas medidas no segundo governo FHC deram impulso ao álcool. Uma foi a criação da CIDE Combustíveis, em 2001, para, entre outros, subsidiar o biocombustível. A outra foi a elevação, no mesmo ano, da mistura de álcool na gasolina de 22% para 24%.

Com a alta no preço da gasolina, as pessoas começaram a usar etanol por conta própria, para economizar, diz Henry Joseph Júnior, diretor técnico da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores). “Sabendo que já tinha 22% de álcool na gasolina, o pessoal passou a misturar mais. Chamavam aquilo de ‘rabo de galo’.”

O comportamento danificava os carros, mas chamou a atenção das montadoras: “Elas perceberam que o consumidor queria o álcool, só não queria depender apenas dele”.

Em 2003, com o advento de sensores digitais para combustível e de um novo modelo de injeção eletrônica, a Volkswagen lançou o primeiro carro flex, um Gol, sendo logo seguida pelas concorrentes.

“Caiu no gosto do consumidor definir na hora do abastecimento se escolhia álcool ou gasolina. Hoje, 100% dos carros produzidos no Brasil são flex”, lembra Júnior.

À época, o álcool ganhou um rebranding e passou a ser chamado de etanol, pontua Adriano Pires, fundador do CBIE (Centro Brasileiro de Infraestrutura) e especialista em petróleo e energia.

“Nessa segunda fase, a questão ambiental já tem muita importância. O Brasil descarbonizando, o Lula dizendo que somos a Arábia Saudita verde. Veio um boom do etanol entre 2003 e 2008, com muitas usinas construídas com crédito do BNDES”.

Um Palio flex para Fidel

A partir do carro flex, intensificou-se um projeto que vinha sendo ensaiado desde os tempos áureos no início dos anos 1980: internacionalizar o álcool como combustível veicular para estimular a demanda e dar escala à oferta.

A busca por alternativas incluiu episódios anedóticos. Por exemplo, de quando o empresário Maurilio Biagi Filho, que fez carreira como usineiro à frente da histórica Santa Elisa, em Sertãozinho, orquestrou a doação de um Palio a álcool para Fidel Castro.

Era 2003 e o líder cubano recebia uma comitiva brasileira acompanhando o presidente Lula em histórica viagem a Cuba.

Biagi Filho fazia parte do grupo de empresários que foi uma semana antes preparar a visita. “Sugeri como uma brincadeira para o cara da Anfavea. Ele até tentou, mas não conseguiu.”

O empresário afirma que interveio junto à Fiat no Brasil para conseguir um carro. “No dia da assinatura dos acordos, perguntei ao Celso Amorim o que ele achava da ideia, e ele me falou que eu podia seguir em frente.” Em seguida, relata, conversou com Lula, que deu a chave para Fidel como um presente da montadora.

No improviso diante da quebra de protocolo, o cubano fez uma piada: ainda bem que o presente não era para “os amigos russos”, senão eles beberiam todo o etanol.

Inimiga íntima ou principal aliada?

Aquele momento promissor, contudo, também encontraria um fim — embora o carro flex agora assegurasse um “colchão” para as quedas do etanol.

E mais uma vez a crise trazia o nome da Petrobras. Em 2006, o Brasil descobriu as reservas do pré-sal, que desviaram o olhar do governo para o combustível fóssil. E, em 2008, a gestão Dilma Rousseff criou um controle de preços para a gasolina.

“O grande competidor do etanol sempre foi a Petrobrás. As políticas de preços muitas vezes inviabilizaram a competitividade do etanol. E energia é um produto que não pode faltar, senão entra em descrédito”, explica Pires, do CBIE.

Segundo ele, o controle de preços levou várias usinas a fecharem, “principalmente as que não tinham a possibilidade de fazer arbitragem com o açúcar”, em uma quebradeira que durou até 2013.

Gonçalo Pereira, coordenador do Laboratório de Genômica e BioEnergia da Unicamp, faz um contraponto. “Substituir o petróleo não é brincadeira. São centenas de milhões de anos de fotossíntese acumulada. Só o poço de Tupi produz 2,42 hexajaules de energia. Todas as usinas de etanol juntas produzem 0,62 hexajaule. O etanol custa R$ 0,10 por megajaule. O petróleo, R$ 0,005. Não dá para competir.”

Além disso, ele diz, parte importante do mercado de etanol foi e é desenvolvida por empresas que operam também combustíveis fósseis. “Os maiores produtores no País são Raízen, Shell, BP e Atvos, uma empresa do fundo soberano de Abu Dhabi. É tudo energia.”

De acordo com o pesquisador, para se desenvolver, o Brasil terá de contar com ambas as matrizes e ampliar o consumo per capita. “Enquanto os EUA usam 280 gigajaules por habitante, o Brasil usa 59. Com petróleo e biocombustíveis, a gente tem uma oportunidade valiosa de desenvolvimento.”

“Euforia ambiental” resgata o etanol

Na última década, o aumento da pressão global por descarbonização, intensificada pelas metas do Acordo de Paris, soprou ventos de bonança para o álcool — agora amplamente conhecido como etanol.

Em 2015, a mistura na gasolina subiu para 27%. Dois anos depois, surgiu o RenovaBio, a Política Nacional de Biocombustíveis. Criado para expandir a produção de etanol, biodiesel e biometano, o instrumento certifica produtores com créditos de descarbonização, os CBIOs.

Em 2024, a Lei do Combustível do Futuro fixou metas de descarbonização para os setores de transportes e mobilidade, com estímulos à produção de diesel verde, biometano e biocombustível de aviação (SAF).

E, em agosto, entrou em vigor o E30, ampliando a fatia de etanol na gasolina para 30%.

Como a maioria dos especialistas ouvidos, Pires, do CBIE, relaciona as inovações a ecos do Proálcool e as recebe com aplausos, mas diz que o sofrimento do setor continua sendo a falta de previsibilidade.

“Hoje, o etanol está em um momento de euforia ambiental. A lei já prevê a mistura até 35%. Será cumprida? Não sei, porque no Brasil, tem lei que pega e lei que não pega. Se o petróleo cair e o etanol estiver caro, até que ponto o governo vai manter a mistura?”

“No fundo”, ele completa, “o problema é que o ambientalista quer ir para o céu, mas não quer morrer; quer descarbonizar, mas não quer pagar mais”.

Esta é a terceira de uma série de reportagens do The AgriBiz sobre os 50 anos do Proálcool. Clique aqui e leia o primeiro e o segundo episódios — o quarto e último será publicado na próxima semana.

Fonte: The AgriBiz