Por Martinho Seiiti Ono*
O setor aéreo mundial, emitindo aproximadamente 900 milhões de toneladas de CO2 anuais, ou 2% de todas as emissões geradas pela atividade humana, assumiu o compromisso de zerar as emissões de gases do efeito estufa (GEEs) até 2050. Para alcançar essa meta ambiciosa, o segmento aposta na substituição do querosene de aviação, o QAV, hoje responsável por cerca de 40% do custo das operações das companhias aéreas, por combustíveis sustentáveis, os SAFs (Sustainable Aviation Fuels).
Mundialmente, as empresas do segmento buscam reduzir custos de produção e aumentar a disponibilidade de matérias-primas para a fabricação dos SAFs. Nessa corrida global, o Brasil pode largar com vantagem considerável em função de dois fatores primordiais: a abundância de insumos agrícolas e a expertise tecnológica consolidada há quase meio século com a produção e uso de biocombustíveis para a indústria automotiva. Assim como no passado, esses diferenciais poderão novamente representar uma vantagem competitiva no médio e longo prazo. Dessa forma, o país pode promover uma nova revolução verde nos transportes, agora, no setor aéreo.
Tendo em vista a liderança brasileira na utilização de etanol, cabe uma indagação: o Brasil será um mero fornecedor de matéria-prima ou um produtor de SAFs? Aqui, considera-se que o país reúne todas as condições para se tornar um grande protagonista desse mercado, entregando o produto final com o devido valor agregado. É uma oportunidade que não pode ser desperdiçada, ainda mais considerando as potencialidades brasileiras na produção agrícola, especialmente na cana-de-açúcar, soja, milho e sebo bovino.
O setor produtivo nacional está preparado para atender à demanda e ofertar SAFs de forma competitiva. Isso, sem prejuízos à produção alimentar e, simultaneamente, agregando valor ao produto nacional. O setor sucroenergético brasileiro já demonstra isso desde a década de 1970, quando foi lançado o Proálcool e, alguns anos depois, ao produzir os primeiros carros movidos a etanol em escala comercial.
A partir de 2003, com o início da produção de veículos flex, o Brasil novamente surpreendeu, atingindo, hoje, o mundialmente inédito percentual de 80% da frota de veículos leves em circulação equipados com motor flex. Além disso, a mistura de etanol anidro na gasolina avançou gradativamente.
Hoje atinge 27% e tem boas perspectivas de aumentar ainda mais. O etanol, agora incrementado também pelo produto a partir do milho, dispõe de extensa infraestrutura de distribuição, consolidada em mais de 42 mil postos de combustíveis. Essa base logística impulsionou o desenvolvimento no Brasil do primeiro carro híbrido flex do mundo, o Toyota Corolla, lançado em 2019. A mesma tecnologia já está nos planos de outras montadoras como Renault, Volkswagen e Stellantis, que reúnem marcas como Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën.
Acrescente-se a esse cenário o uso do bagaço da cana para produzir o etanol de segunda geração (2G), que não exige expansão de fronteiras agrícolas, e a bioeletricidade. Nesse último caso, dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) indicam que, em 2023, o volume produzido pelas usinas canavieiras foi equivalente a 22% da geração de energia pela Usina de Itaipu.
Para o Brasil repetir essa exitosa experiência e decolar rumo aos SAFs, deve-se acrescentar à prática três medidas fundamentais: regulamentação, padronização dos SAFs e atração de investimentos.
O primeiro passo está em curso com o Projeto Combustível do Futuro. A regulamentação desta iniciativa, que trata essencialmente da transição energética, será de fundamental importância para haver investimentos na produção de etanol, biodiesel, biogás, biometano e, evidentemente, de SAFs.
Com uma política de longo prazo definida, será preciso garantir que as condições de uso dos SAFs atendam às normas técnicas internacionais, sem prejuízo para as companhias aéreas e seus usuários. Assim, um avião abastecido no Brasil poderá operar em outras partes do mundo sem qualquer impedimento.
Por último, fazem-se necessários, mesmo inicialmente, incentivo e linhas de financiamentos para alavancar investimentos em plantas industriais voltadas à fabricação dos SAFs. Nos Estados Unidos, já existem subsídios para estimular a produção desses novos biocombustíveis. Essa é uma forma de se reduzir o custo de produção, que para os SAFs, hoje, pode ser até quatro vezes maior quando comparado ao querosene de aviação de origem fóssil. Com maior escala, naturalmente os custos de produção serão reduzidos.
Conforme levantamento da SCA Etanol do Brasil, há 15 plantas comerciais de SAFs em operação no mundo, localizadas na Espanha (quatro), Estados Unidos (duas), Itália (duas), Finlândia, Singapura, Áustria, China, Alemanha, França e Reino Unido. Esse levantamento aponta 43 companhias aéreas já comprometidas a utilizar em torno de 16 bilhões de litros de SAF em suas operações até 2030. De uma produção global de 390 bilhões de litros de querosene para aviação, apenas 14 milhões de litros são SAFs, conforme o estudo “Disponibilidade de Matéria-Prima para Combustível de Aviação no Brasil”, publicado pelo Agroícone.
No imenso potencial brasileiro para a produção de SAFs, graças à ampla disponibilidade de matérias-primas agrícolas, o destaque é a cana-de-açúcar, até o momento o maior trunfo do Brasil para alavancar a fabricação do biocombustível com menor pegada de carbono. Do ponto de vista ambiental, o etanol de cana é a fonte mais eficiente em termos de redução de emissões de CO2. Nos EUA, maior produtor de etanol do mundo, cuja fonte é o milho, a fabricação de SAFs obtidos dos milharais apresenta um nível de emissão maior se comparado ao produto que vem da cana.
Vale fazer um resgate histórico do uso pioneiro de biocombustíveis na aviação brasileira. Há 20 anos o avião agrícola Ipanema, fabricado pela Embraer, voa com etanol hidratado. Na aviação comercial, a Azul realizou, em 2012, um voo com 50% de combustível produzido de cana. Em 2013, um jato da Gol partiu de São Paulo para Brasília com uma mistura de 25% de óleo de milho e de gorduras residuais. Em 2014, novamente, a Gol estabeleceu a primeira rota fixa usando até 10% de bioquerosene de cana no QAV, entre Recife e Fernando de Noronha. Houve redução de 30% das emissões de CO2 em cada viagem.
Pelo mundo, desde 2008 empresas como United Airlines, Japan Airlines, KLM, Atlantic Airways, Air New Zealand e Continental Airlines igualmente usaram BioQAV e outros combustíveis de origem renovável. Tais experiências não se limitaram aos bons resultados na aviação comercial e agrícola. Em 2010, um jato supersônico da Força Aérea dos EUA voou com uma mistura de 50% de biocombustível.
O Brasil está suficientemente maduro para inovar e avançar na produção dos SAFs, podendo incluir os biocombustíveis para a aviação no plano de voo. O país dispõe de farta matéria-prima, competência acadêmica, agroindústria estruturada e competitiva. Todos os fatores, portanto, para mudar o futuro.
*CEO da SCA Brasil
Fonte: Artigo publicado originalmente na Revista Opiniões, edição nº 79 (Fevereiro-Abril de 2024)