Por Ricardo Mussa*
Você já deve ter lido que o Brasil é referência mundial na transição energética para uma economia de baixo carbono. Temos a matriz elétrica mais limpa do mundo, com 84,8% oriunda de fontes renováveis, contra uma média mundial de 29%.
Diante dos desafios globais de descarbonização, isso levanta uma pergunta simples: como se exporta energia renovável para a China, para os EUA ou para qualquer outro país distante?
Fontes fantásticas, como a solar e a eólica, podem gerar energia em abundância, que, no entanto, não pode ser armazenada nem embarcada em um navio cargueiro.
O que você talvez ainda não tenha lido é que temos no país uma “tecnologia” capaz de captar, armazenar e transmitir energia para o outro lado do planeta. Ela se chama cana-de-açúcar.
Uma bateria natural, que absorve luz no canavial e vira matéria-prima para diferentes soluções energéticas que têm como ser transportadas de um porto no Brasil a outro em Xangai ou na Califórnia. Mas imagino que a sua dúvida ainda persista: como fazer uma lâmpada acender lá a partir daqui?
Para entender melhor, é importante dividir toda a riqueza da cana em três terços: primeiro, o caldo da cana, que é base para a produção de açúcar e etanol de primeira geração, tecnologia conhecida e dominada há muitos anos pelo setor; depois, o resíduo da extração do caldo, o bagaço da cana, usado para produzir bioeletricidade e, mais recentemente, o etanol de segunda geração, que será fundamental para alimentar soluções em desenvolvimento, como o SAF (combustível sustentável de aviação), o biobunker (combustível sustentável marítimo) e o hidrogênio verde; por fim, a folha, que antes era queimada nos canaviais e hoje ainda fica jogada no campo e contém o último terço da energia total da cana, mas que ainda é pouco aproveitado.
Outro resíduo da produção da cana é a vinhaça, que recentemente se tornou fonte para produção de biogás, que pode ser convertido em biometano para ser injetado nas redes de gás natural ou substituir o diesel na frota de caminhões.
De todas essas soluções, somente a bioeletricidade não pode ser vendida para outros lugares do mundo. Portanto, ela fica como alternativa de energia limpa para o mercado interno, abastecendo pequenos, médios e grandes consumidores locais, em substituição a fontes como o óleo combustível, que ainda é usado em indústrias ou termelétricas, por exemplo.
Já o etanol, seja o de primeira geração (E1G), seja o de segunda (E2G), é a melhor alternativa para cruzar o Atlântico e atender às necessidades de diferentes mercados, que têm seus próprios desafios e mandatos para redução de emissões.
Só uma explicação: o E2G é um subproduto que emite 30% menos gases de efeito estufa, quando comparado ao E1G, e tem melhor precificação em mercados internacionais.
Uma opção ainda melhor do que exportar o etanol seria usá-lo na indústria nacional como matéria-prima na produção de SAF, biobunker e hidrogênio verde, produtos com enorme potencial de exportação e maior valor agregado.
O SAF pode reduzir em até 80% as emissões dos aviões. Como a produção de uma molécula de SAF demanda 1,7 molécula de etanol, do ponto de vista logístico seria muito melhor desenvolver a indústria aqui no Brasil e exportar o SAF já pronto.
O etanol já descarbonizou boa parte da matriz de transporte nacional. Agora é hora de ver o que ele pode fazer pelo mundo.
*Quero agradecer à Folha pelo convite para ocupar quinzenalmente este espaço para discutir energia. Pretendo usá-lo em prol da troca de ideias que mirem no nosso desenvolvimento econômico de maneira sustentável, com foco nas pessoas e no meio ambiente. Muito obrigado.
*Engenheiro de produção, é CEO na Raízen desde 2020 e lidera a força-tarefa de transição energética e clima do B20 Brasil.
Fonte: Folha de S.Paulo