
As irregularidades apontadas pela ANP após a operação que interditou na semana passada a Refinaria de Manguinhos, operada pela Refit, no Rio de Janeiro, já haviam sido identificadas em uma fiscalização da própria ANP há oito anos, em fevereiro de 2017. A operação é parte das investigações que apuram o esquema de adulteração de combustíveis pelo PCC.
A ANP e a Receita Federal, que conduziram as diligências da segunda fase da operação Cadeia de Carbono, acusam a Refit de importar gasolina irregularmente com o “provável” objetivo de obter vantagens tributárias fraudulentas. Segundo a agência, não há evidências de que Manguinhos de fato refinava combustíveis em seus tanques.
A suspeita é de que a refinaria importa derivados de petróleo já prontos de forma irregular para driblar o Fisco, declarando os produtos como nafta petroquímica – cuja incidência tributária é substancialmente menor do que a da gasolina e do diesel. A nafta é um dos insumos usados na produção dos combustíveis, entre outros materiais.
Informações obtidas pela equipe da coluna, porém, mostram que essas suspeitas não são novas — pelo menos para a ANP. Um parecer técnico sigiloso formulado em 2017 ao qual tivemos acesso informa que o mesmo problema foi detectado naquele ano, durante uma inspeção de rotina às instalações da Refit.
“A conclusão dos fatos apresentados é que a refinaria de Manguinhos realiza processo de formulação de gasolina, isto é, a simples mistura mecânica de produtos (condensado e aromático) com o objetivo de atingir a especificação dada por resolução da ANP. Nesta linha de raciocínio, não há evidências de operação de refino sendo realizada por Manguinhos”
De acordo com o relatório, a fiscalização constatou que a refinaria processou 310 metros cúbicos de gasolina entre janeiro e fevereiro de 2017, muito menos do que os 40 mil m³ declarados à ANP. A agência também coletou documentos no laboratório da Refit que indicavam que os insumos encontrados nas instalações, como a nafta, eram justamente os utilizados para aproximar o produto final das características fixadas pela agência para a gasolina, como a octanagem.
À época, o parecer foi usado pela equipe técnica da ANP para a interdição de unidades que tinham sido lacradas pela agência, o que se concretizou em março de 2017. Não adiantou.
Segundo relatos de fontes envolvidas no processo ouvidas pela equipe da coluna, a refinaria foi totalmente liberada por decisão de um superintendente da agência sem respaldo da equipe técnica dois meses depois, em maio. Esse mesmo superintendente fez um novo parecer rebatendo as conclusões dos técnicos, que acabaram afastados após pressões internas, ainda de acordo com pessoas familiarizadas com o ocorrido.
Em novembro do mesmo ano, outra equipe sem relação com a primeira vistoriou a Refit e produziu um parecer afirmando haver refino em Manguinhos.
Foi nessa mesma época que o Grupo Magro, que controla a refinaria desde 2008, decidiu rebatizá-la de Refit. Além da fiscalização, a empresa estava no centro de sucessivos escândalos e disputas judiciais relacionadas a suspeitas de sonegação e cobrança de dívidas de títulos de debêntures.
Avanço em SP e no RJ
Além da interdição das instalações de Manguinhos, na Zona Norte do Rio, pela ANP, a Receita Federal reteve na última sexta dois navios com 91 milhões de litros de diesel avaliados em R$ 290 milhões e 115 toneladas de insumos para aditivos de combustíveis com origem no exterior que seriam destinados à Refit. A diligência também fez parte da segunda fase da Operação Cadeia de Carbono.
A Refinaria de Manguinhos entrou na mira da investigação, também conduzida pela Polícia Federal (PF) e o Ministério Público de São Paulo, pela suspeita de que parte dos combustíveis adulterados no esquema do PCC saíam da Refit e de distribuidoras vinculadas ao grupo.
O envolvimento no esquema teria ocorrido após a ANP suspender no ano passado as atividades da produtora Copape, que é investigada pela PF. Suspeita-se que as alegadas fraudes tributárias na importação de combustíveis disfarçados de nafta também abririam margem para a lavagem de dinheiro operada dentro do esquema.
Como mostrou O GLOBO, um relatório do Instituto Combustível Legal (ICL) com base em dados da própria ANP indicou que a Refit dobrou a participação na comercialização de óleo diesel em São Paulo no último ano, além de ampliar a venda de gasolina no estado e no Rio de Janeiro.
De acordo com o levantamento, Manguinhos somava 5,3% do mercado paulista de diesel em junho de 2024, índice que cresceu para 10,9% em junho deste ano. Já a porção da distribuição de gasolina aumentou de 9,3% para 17,9% no estado vizinho no mesmo período. No Rio, o crescimento foi de 3% e 7% para os respectivos combustíveis.
Questionada pela reincidência apontada pela ANP, a Refit afirmou que o parecer técnico inicial foi arquivado e que outro relatório da agência reguladora, em 2019, atestou o refino em Manguinhos.
Em relação à operação desencadeada na semana passada, a refinaria destacou em comunicado enviado à imprensa que protocolou uma carta-resposta à Agência Nacional de Petróleo se colocando à disposição para implementar suas exigências, mas manifestou discordância sobre a interdição.
A Refit se diz alvo de “medida desproporcional e arbitrária”, uma vez que a ANP não teria comprovado “falha grave vinculada a elemento crítico de segurança operacional e configurando risco grave e iminente”, critério para interdições cautelares da agência. Rebateu, ainda, a constatação de que não refina combustíveis.
“Além disso, a divulgação de acusações vagas de indícios de fraude e de ausência do processo de refino em suas instalações por autoridades da ANP à mídia não constam no auto de infração, o que caracteriza afronta aos princípios constitucionais da legalidade, razoabilidade, proporcionalidade, contraditório e ampla defesa”, frisa a nota da Refit (leia a íntegra ao final do texto).
Nós também perguntamos à ANP por que outras fiscalizações nos últimos anos não detectaram a alegada falta de refino em Manguinhos denunciada pelo órgão na operação da semana passada. A assessoria de imprensa do órgão informou que, por se tratar de um processo de 2017, não pôde responder até o fechamento da reportagem e “está resgatando as informações e responderá após a análise das áreas técnicas responsáveis”. O espaço segue aberto.
Leia abaixo a íntegra do comunicado da Refit à imprensa:
A Refit protocolou na última terça-feira (30) na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) uma carta-resposta em que afirma estar adotando todas as exigências da agência que embasaram a interdição determinada semana passada. Apesar disso, a empresa pontua que os 11 pontos levantados pela agência durante a fiscalização não estão entre os critérios considerados pela legislação (artigo 5º da Lei nº 9.847/1999) que prevê uma interdição, pois não representam riscos ao consumidor, ao patrimônio público ou ao meio ambiente. Diante disso, a Refit também solicitou uma reunião presencial com a ANP com a presença de analistas com conhecimento técnico na área para o melhor entendimento de algumas questões específicas.
Além da ausência de fundamentação, a Refit destaca que tomou ciência da interdição pela imprensa, antes mesmo de receber notificação formal da agência. Além disso, a divulgação de acusações vagas de indícios de fraude e de ausência do processo de refino em suas instalações por autoridades da ANP à mídia não constam no auto de infração, o que caracteriza afronta aos princípios constitucionais da legalidade, razoabilidade, proporcionalidade, contraditório e ampla defesa.
Em relação à qualidade dos produtos, por exemplo, ANP concluiu que não foram encontradas discrepâncias entre os resultados declarados pela empresa nas especificações de gasolina automotiva e os que foram inspecionados. O mesmo ocorreu com a análise dos produtos importados nos últimos 12 meses e devidamente certificados – o que demonstra não haver necessidade de paralisação total das atividades.
Foi constatado ainda que as matérias primas analisadas não se configuram como gasolina automotiva importada, sendo necessário, portanto, o processo de refino para que o produto seja comercializado no mercado. Diante de tal constatação, não é factível dizer que a Refit não realiza o refino dos produtos.
A Refit ressalta que a própria metodologia da ANP para caracterização de processos que não estão em conformidade com as regras exige a comprovação de falha grave, vinculada a elemento crítico de segurança operacional e configurando risco grave e iminente. Nenhuma das situações descritas no auto de fiscalização preenche esses critérios. Assim, a empresa entende que a interdição cautelar carece de fundamento técnico e jurídico, configurando medida desproporcional e arbitrária.
Apesar de discordar da suspensão, mas para demonstrar sua boa-fé e logo viabilizar a pronta desinterdição e retomada segura das operações – das quais depende a subsistência de cerca de 2.500 trabalhadores -, a Refit adotou um conjunto de medidas técnicas, administrativas e documentais para atender às condicionantes impostas pela ANP, mesmo que não exigidas pela legislação.
Isso inclui a totalização automatizada dos volumes processados, o detalhamento adicional dos processos de gestão das unidades de refino, a apresentação de evidências técnicas sobre as torres de destilação, a apresentação de parecer e documentação técnica que demonstram a racionalidade econômica e técnica do processamento de matérias-primas, aperfeiçoamento no isolamento já existentes dos tanques de armazenamento, entre outras medidas administrativas, de governança e compromisso institucional.
A adoção imediata dessas medidas demonstra a postura colaborativa e responsável da Refit, que busca a rápida solução para restabelecer a normalidade operacional sem prejuízo da segurança, do meio ambiente ou do consumidor. Todos os documentos comprobatórios foram protocolados ao processo nos termos indicados no auto de fiscalização.
Por fim, a Refit reafirma que as constatações incluídas no documento de fiscalização, mesmo quando avaliadas isoladamente, não configuram a presença de risco grave e iminente nem se enquadram nas hipóteses legais que autorizariam a interdição total das instalações, conforme demonstrado tecnicamente pela refinaria nos autos do processo administrativo da ANP.
A companhia permanece à disposição para prestar todos os esclarecimentos adicionais, agendar reuniões técnicas com os especialistas indicados pela ANP e colaborar com eventuais diligências complementares que se façam necessárias para a pronta revogação da medida e retorno das atividades em estrita observância às normas aplicáveis.
Por Malu Gaspar e Johanns Heller (O Globo)
Fonte: Sindicomb